A lei diz, a rádio cumpre, mas os artistas contestam. As rádios portuguesas e os músicos estão em braço de ferro no que diz respeito à quota mínima de transmissão, algo que, noutros países nem existe. É uma questão de mentalidade ou uma impossibilidade?
A luta pela quota mínima de transmissão da música portuguesa entre as rádios e os músicos portugueses começou com o fim da pandemia, onde leis excepcionais foram supostamente abandonadas, como a obrigatoriedade de transmissão de música portuguesa pela rádio com quota mínima de 30%.
A partir de 2022, a quota reverteu para 25% e, agora, os artistas pedem que não se dêem passos atrás naquilo que foi um bom sinal de progresso para a cultura nacional.
“Um dos fatores para que se ouça muito mais música portuguesa, hoje em dia, está relacionado com a quota mínima, foi uma ajuda. Nós adoraríamos que não existissem quotas, mas quando as impomos, estamos a pensar nas próximas gerações em que já será normal ligar a rádio e ouvir música portuguesa”, explicou Bernardo de Carvalho Costa, mais conhecido por Agir, seu nome artístico.
No entanto, a quota existe e é variável de 25% até 40%. O que não agrada aos artistas é a quota mínima permanecer tão baixa. Na pandemia, a ministra da Cultura da altura, Graça Fonseca, aumentou a quota para 30%, tendo em conta as dificuldades financeiras dos artistas.
Mas parece que o cenário não foi bem assim, segundo nos contou Luísa Sobral, artista e compositora portuguesa.
“O diretor da Audiogest disse-me que essa medida foi pensada antes da pandemia se instalar e, depois, acabou por entrar no pacote de medidas da pandemia. Isso acabou por ser uma desculpa do novo ministro da Cultura para acabar com ela”, revelou Luísa.
Da mesma forma, a compositora portuguesa explicou que não houve uma ação propositada por parte do Executivo para descer a quota, mas que simplesmente a lei não foi revista para o ano seguinte e, de acordo como está estabelecida, a quota voltou a reverter para os 25%.
“Essa descida não foi uma ação, mas uma inação tornada ação. Supostamente, o ministro da Cultura tem de se encontrar com a Audiogest e outras entidades e, daí, tomar uma decisão se é para baixar ou não. Isso não aconteceu, não houve reunião, então, simplesmente, a lei voltou para o que era antes da pandemia – isso sim foi grave”, realçou.
“Mudam-se os tempos...mudam-se as vontades.” Mas só de alguns
“As rádios são o parente pobre da comunicação. Quem são as pessoas que têm muito dinheiro? As rádios têm pouquíssimo dinheiro, então os autores têm vários prédios e património e somos nós que acabamos por resolver os problemas dos músicos portugueses?”, questionou Luís Mendonça, Presidente da Associação Portuguesa da Radiodifusão.
Apesar de se dizer “solidário” com os artistas, o presidente, e também locutor na Universidade FM, refere que “isto só será proveitoso para os artistas”, quando os mesmos têm direito a distribuição de verbas às quais as rádios “não têm”.
Para Luís Mendonça, e também António Mendes, diretor da RFM, as quotas podem ser bastante limitadoras para os programadores e muitas das estações têm estilos específicos que, de acordo com Mendonça, não têm produção suficiente em Portugal para cumprir a quota.
“Acho que (a quota de 30%) vai limitar muito os nossos programadores. Nós temos programas de rádio com diferentes tipos de música e temos de ter a liberdade de fazer a rádio que nós achamos que é melhor, com programação que vai ao encontro aos nossos ouvintes”, referiu António Mendes.
No entanto, segundo o artigo 45 da lei nº54/2010, está estipulado que a quota “não é aplicável aos serviços de programas temáticos musicais cujo modelo específico de programação se baseie na difusão de géneros musicais insuficientemente produzidos em Portugal".
Para além disso, Luísa Sobral encontrou uma lacuna grande nalgumas rádios que ainda alegam que não se produz o suficiente para os estilos musicais que transmitem.
“Há rádios que estão isentas da quota, como a Cidade FM, a Mega Hits e a Nova Era, porque quando as quotas foram aplicadas, a música que estas rádios passam - urbana, rap e pop - não era suficiente para preencher as quotas”, explicou.
Porém, ressalva que “na altura isso podia ser verdade”, mas em 2023 esses estilos são os “predominantes” atualmente na produção de música portuguesa.
Para António Mendes, da RFM, as quotas não são necessárias, uma vez que a rádio já toca música portuguesa por si só.
“A questão da quota é uma não questão para nós, porque nós estamos sempre disponíveis a tocar boa música, que as pessoas queiram ouvir. Esta tomada de posição para nós é meio estranha, porque entendemos que estamos em tempos de colaboração com artistas”, recordou.
No entanto, não ficou explícito a quota que a RFM adota, mas o diretor António Mendes garante que tem as portas abertas aos artistas portugueses.
“Enquanto houver estrada para andar, a gente vai continuar”... mas há quem diga que não há estrada
Segundo o artigo 44º da Lei nº54, 35% da quota adotada nas rádios para a transmissão da música portuguesa (de 25% a 40%) tem de ser de música portuguesa lançada há menos de 12 meses.
Para Luís Mendonça, não se produz o suficiente nesses meses, nem em diferentes géneros, para que essa quota seja cumprida, afirmando que esta posição é baseada no “que a própria associação fonográfica assume”.
Porém, a Sociedade Portuguesa de Autores, que regista todas as músicas portuguesas produzidas em Portugal, rejeita essa ideia e até vai mais longe.
“É uma mentira completa, cada vez se produz mais música portuguesa, nunca se produziu tanta. Eu até digo: 25% podem preencher só com música portuguesa produzida nos últimos 12 meses e podem por outros 25% em cima para os últimos 100 anos e temos facilmente 50% de música portuguesa nas rádios”, revelou Tozé Brito.
Da mesma forma, Agir lembra que, quando iniciou a sua carreira, dava para combinar entre artistas quando lançava as suas músicas para não se sobreporem uns aos outros.
Hoje em dia, o cenário é muito diferente sendo impossível não haver no mesmo dia pelo menos duas músicas portuguesas a serem lançadas.
“Ter alguém à frente de uma instituição a dizer que nós não temos produção nacional é uma pessoa que está completamente desfasada da realidade e isso também é uma coisa triste”, comentou.
No entanto, o presidente da APR diz que, mesmo que se produza mais música, nem todas são passíveis de ser transmitidas, ou porque não se enquadram no género ou simplesmente porque não têm qualidade suficiente.
“Os grupos que não são bons e não fazem boa música, não passam, nem todos podem ser bons”, comentou.
“Ouvi dizer que o nosso amor acabou, pois eu não tive noção do seu fim...”
Para as rádios, nomeadamente António Mendes, a luta passa por perceber “como funciona o panorama audiovisual, perceber como é que um artista hoje se faz mostrar num panorama que é extremamente rico, com múltiplas ofertas e em que a atenção das pessoas é cada vez mais difícil de conquistar”.
Também, para Luís Mendonça, não são as rádios que deviam assegurar estabilidade aos artistas, sendo que as próprias precisam de apoios, mas especialmente de liberdade para conseguirem segurar os seus ouvintes e garantir uma “boa programação”.
Já para os artistas, as quotas são importantes, até se mudarem as mentalidades.
“O ideal é um dia podermos viver num país em que não sejam precisas quotas, mas até isso não ser uma realidade, serão precisas”, referiu Agir.
Luísa Sobral diz que esta luta não é apenas dos artistas, mas de qualquer pessoa que preze os portugueses e a economia nacional.
“Nós, artistas, não somos os coitadinhos. A mensagem é: passem-nos na rádio, porque nós somos cultura nacional, as pessoas gostam de ouvir e a música portuguesa gera postos de trabalho para a economia nacional”, comentou.
No que diz respeito à SPA, Tozé Brito esclareceu que “o que a música portuguesa pede às rádios é mais carinho e atenção ao que se faz em Portugal, que é de muita quantidade e qualidade”.
“Perdoa se peço demais”
É uma questão de impossibilidade ou uma questão de mentalidade?
Segundo Tozé Brito, cada vez que atravessa a fronteira para ir a Badajoz, a única música que ouve nas rádios é a espanhola, quando vai a França, só ouve música francesa e assim por diante.
“Nós somos estranhamente um país que não tem absolutamente amor nenhum por aquilo que se produz localmente em termos de música e não só. Em termos culturais somos realmente estranhos. Nem foram precisas leis nenhumas para os espanhóis tocarem música espanhola, eles tocam porque têm amor à sua própria música, língua e cultura”, conclui o autor.
A quota mínima da transmissão de música portuguesa nas rádios foi criada em 2006, apenas alterada em 2021 provisoriamente.
Os artistas argumentam que, quanto mais música passar na rádio, mais se vai ouvir e produzir em Portugal, incentivando as próximas gerações, tal como se verificou em França, que tem uma quota mínima de 40%.
“Em França, eles subiram a percentagem para 40% e teve um impacto enorme, muitos mais projetos musicais, muitos mais concertos e mais artistas franceses a serem conhecidos lá fora”, demonstrou Sobral.
Já no outro lado do Atlântico, estão dois ou três passos à frente de Portugal, sendo que não existem quotas.
“Falei com um amigo meu do Brasil, porque lá eles ouvem muita música brasileira, e estava a dizer que já houve quotas nos anos 70, mas deixaram de fazer sentido porque tocam mais música brasileira do que estrangeira”, exemplificou a compositora.
Para Luísa Sobral o objetivo das quotas é esse: “que deixem de fazer sentido, para haver uma mudança de mentalidade”.
“E diz o inteligente... que acabaram as canções”
Por cá, o valor mínimo permanece nos 25%, mas o movimento Quero Mais Música Portuguesa, que junta vários artistas nacionais, já começou a crescer e partidos políticos, como o Bloco de Esquerda, já querem levar essa vontade para a Assembleia da República.
Para além disso, existe uma petição “Pelo aumento da quota mínima obrigatória de música portuguesa nas rádios” criada por Rogério Charraz e José Fialho Gouveia que se dirige ao ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva.
Os dois lados estão dados, agora resta saber de que lado é que o Governo está.