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Sonho de bailarina: a história da professora de ballet de 74 anos que não desistiu do seu mundo encantado

Ser bailarina é uma preparação para a vida, diz Ana Rita Baeta Neves, professora de ballet, de 74 anos. Apesar de o médico já a ter proibido dar aulas, os três encontros semanais com as alunas mantêm vivo o sonho da menina que dançava pelas ruas de Lisboa. Agora, passa à filha um legado de 50 anos no ensino. E quando acabar? A dança continua. “Sinto-me no meu mundo. Não preciso de ir ao shopping”.

Sonho de bailarina: a história da professora de ballet de 74 anos que não desistiu do seu mundo encantado

Pelas ruas da Tapada da Ajuda, sobre o chão coberto de flores de olaias, corria até deixar de sentir os pés a tocar no chão. A imaginação ditava-lhe um só destino: ser fada e, para isso, precisava de voar. Agarrava no bibe e corria até levantar o tapete de flores cor-de-rosa do chão. E dançava. Quem via Ana Rita a rodopiar nas ruas de Lisboa aos 5 anos dizia que tinha de ir aprender ballet.

"As pessoas viam-me a dançar e disseram aos meus pais: tens que pôr esta rapariga a aprender ballet. E eu fui aprender ballet", conta Ana Rita, antiga bailarina e professora de ballet à SIC Notícias.

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Aos 74 anos, ainda se lembra da magia que foi assistir ao seu primeiro bailado no Teatro São Carlos acompanhada pelo pai. Dos bastidores, viu a sair "umas meninas lindas, todas a brilhar, com coroas de brilhantes, todas vestidas de verde". E disse: "São as minhas fadas, é isto que eu quero". Quando saiu do teatro apressou-se a dizer ao pai: "É o que vou ser quando for grande". O mesmo recado foi dado à mãe quando chegou a casa. E, segundo a própria, contra tudo o que podia acontecer na época, os pais acolheram a vontade e só lhe colocaram um requisito. "Vais ter que trabalhar muito", diziam-lhe.

Do portão da Tapada da Ajuda à Casa dos Açores, onde começou a aprender com a professora Margarida de Abreu, vão cerca de quatro quilómetros. Às vezes, os pais não conseguiam ir buscar Ana Rita no fim da aula e atrasavam-se uns minutos. E era uma das coisas que mais gostava. O atraso dos pais permitia-lhe ver os profissionais em ação a fazerem "aqueles exercícios dificílimos".

"Eu lembro-me, como se fosse hoje, de ver o Armando Jorge, que era o meu príncipe. Eu vi a Águeda Sena, depois vi o Fernando Lima, que foram os que começaram", relata, num tom crítico, aproveitando para condenar aqueles que esquecem quem abriu caminho.

As memórias da infância e adolescência têm como palco o Teatro São Carlos, onde dançou todos os anos, desde os 6 aos 18 anos. "Era tudo mágico", desde os bailarinos até ao senhor Liege, que tratava da iluminação. "Eu achava o senhor Liege um mágico porque punha o céu azul, punha nuvens, estrelinhas...E eu, um dia, disse: 'Conte-me lá como faz estas coisas'". O senhor Liege mostrou "uma espécie de piano onde se sentava" e de onde as teclas faziam disparar cenários que fascinavam a "Ritinha" de 8 anos.


"Era o meu sonho. Cortaram-me as pernas"

À medida que crescia, as exigências aumentavam. "O meu pai disse-me: 'Olha Rita tu vais para a dança porque é o que queres, mas tens de fazer duas coisas. Tens que acabar o 5.º ano e tirar o curso do conservatório para teres um diploma porque em Portugal, sem diploma, não se faz nada'". Terminou o 5.º ano já na escola de Anna Ivanova, conhecida professora inglesa que chegou a Portugal em 1965. Foi também nesse ano que Ana Rita entrou no Conservatório Nacional, uma conquista que a deixou sem a maioria das suas amigas, proibidas pelos pais de conviverem com ela.

Depois de concluir o Conservatório com 19 valores, começaram a surgir oportunidades das portas até então abertas apenas para profissionais. Num telefonema a Madame Ivanova - cuja escola Ana Rita ainda frequentava - , Walter Gore, diretor do grupo Gulbenkian de Bailado, pediu uma aluna que aprendesse o II Ato do Lago dos Cisnes numa semana. "A Madame Ivanova mandou-me a mim. E eu tive que aprender o II Ato numa semana. Foi uma coisa sem explicação. Eu pensei 'Ai Meu Deus, vou fazer aulas com os profissionais'". Depois do Lago dos Cisnes, seguiu-se Giselle e o convite para integrar a companhia.

Pelo caminho ficou o sonho de integrar a "Royal Ballet School", no Reino Unido. Tinha sido recomendada por Anna Ivanova e foi dispensada de prestar audição. Só faltava a bolsa. Para chegar lá precisava de uma nota acima de 18 no Conservatório. Tirou 19, mas a ida foi-lhe negada pelo Ministério, que na altura financiava bolsas de estudo.

"Em outubro recebo uma carta do Ministério a dizer: 'Lamentamos, mas não há verba para a bolsa. A bolsa será dada quando houver condições. Nunca mais houve. Era o meu sonho. Cortaram-me as pernas. É uma dor que eu tenho até hoje", confessa.


"Ana Rita, I always knew it!" (Ana Rita, eu sempre soube!)

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A passagem dos bailados para as aulas de ballet não foi uma surpresa para quem conhecia a Ana Rita. Só se casou e foi mãe quando deixou de ser bailarina por acreditar que a profissão não era compatível com a vida familiar. Conta que, as poucas colegas bailarinas que tinham filhos, não os conseguiam criar. Deixavam os filhos com os pais e viviam numa aflição constante. Não se via nesse papel.

"Deixei de dançar e casei-me. Fui com o meu marido para a Guiné na altura da guerra. Estive lá 6 meses. E quando vim fiquei grávida da Joana", refere.

Mas, como diz, quem pensa na dança desde os 5 anos não consegue deixar de pensar. Pensou em ensinar, mas precisava do aval daquela que ainda hoje é a sua "mestre", a Madame Ivanova. "Ela agarra-me nas mãos, pôs as mãos no colo dela e disse assim: 'Ana Rita, I always knew it (Ana Rita, eu sempre soube). Eu fico a olhar para ela e ela diz: "Yes, I always knew it. No problem. Go, go' (Sim, eu sempre soube. Sem problema. Vai. Vai)".

Assim começou uma escola dirigida por Ana Rita Baeta Neves que cumpre, este ano, 50 anos. Aos 74 anos, ainda dá três aulas por semana a crianças entre os 4 e 7 anos, mesmo contra a recomendação do médico. Defende que, ao contrário do que acontece em muitas escolas, as crianças devem ser ensinadas pela pessoa que mais sabe. O "One Dance Studio" é agora assinado por Ana Rita e Joana Monjardino, a sua filha, que dá aulas a alunas dos 8 aos 80, desde a iniciação à técnica de dança clássica até à aula de barra de chão para seniores.

Joana começou a aprender ballet com Ana Rita, aos 4 anos, e ninguém sabia que a professora era também sua mãe. As colegas só descobriram quando Joana já tinha quase 9 anos. Apesar de ter tirado um curso de Marketing e Publicidade e de ter exercido na área durante alguns anos, dançou ao longo de toda a sua vida. Na escola da mãe, inicialmente, ajudava na gestão, e só depois de concluir o curso de professora com nota máxima é que começou a ensinar.

"Quando ela me começou a ajudar, comecei a ver que ela tinha muitas capacidades para ensinar. E eu a pensar: 'Como vai ser quando eu deixar as aulas?' Eu não quero que a escola acabe. Mas eu sempre pensei: 'Não vou pôr a Joana porque é filha da Ana Rita, porque eu já sei como são as pessoas".

Quando Joana se formou com 'honours', Ana Rita viu reconhecidas todas as competências que sempre tinha atribuído à filha: uma grande musicalidade, a capacidade de perceber logo o exercício e a habilidade para ensinar. Começou a cumprir-se a passagem de um legado. "A ética profissional continua. Quando eu deixar de poder vir, fico totalmente descansada".


As aulas não são o fim... há mais para ver (E nem é preciso ir ao shopping)

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De estilo de dança, o ballet passou a ser um estilo de vida. Com as palavras de Madame Ivanova sempre na ponta da língua, Ana Rita diz que ser bailarina é uma preparação para a vida: aprender a suportar a dor "sem fazer caretas" e a superar o cansaço. Depois dos bailados, o ensino trouxe-lhe o "prazer de dar aos outros" aquilo que recebeu ao longo da vida. Aos 74 anos ainda é professora das alunas mais novas e, pelas suas mãos, já passou uma neta. O fim da carreira como professora não será o 'fim da dança'. Há sempre mais um bailado para ver.

"Eu adoro ópera, eu adoro música clássica. Eu adoro tudo isso. Eu adoro dança contemporânea, eu quero estar a par. Eu tenho que ver essas coisas todas para me sentir no meu mundo. Sinto-me no meu mundo, não preciso de ir ao shopping. É uma alegria não precisar de ir ao shopping".