Um dos filmes mais motivadores da 76ª edição do Festival de Cannes (16-27 maio) foi visto na secção Cannes Classics: tem o título sugestivo de “Chambre 999” e foi realizado pela francesa Lubna Playoust. Não é exactamente um clássico, ilustrando antes a preocupação daquela secção no sentido de, além das cópias restauradas (muitas e fascinantes!), apresentar também abordagens contemporâneas do cinema e da sua história. Trata-se, aliás, de um projecto fundamentado numa memória muito particular, ou seja, um outro filme, datado de 1982, de seu nome “Chambre 666”.
Que aconteceu, então? Em 1982, precisamente, durante o Festival de Cannes, Wim Wenders convocou uma grupo de cineastas (incluindo Jean-Luc Godard, Michelangelo Antonioni e Rainer Werner Fassbinder) para, num quarto de hotel, falarem sobre os desafios que o cinema enfrentava. Não eram entrevistas: fornecido o tema, Wenders colocava os seus convidados perante uma câmara, pedindo-lhes que dissertassem como muito bem entendessem… Assim surgiu “Chambre 666” — quatro décadas depois, na edição de 2022 de Cannes, Playoust fez o mesmo, sendo Wenders o primeiro convidado, surgindo depois, entre outros, David Cronenberg, Baz Luhrmann e Kleber Mendonça Filho.
Que faz de “Chambre 999” um objecto realmente motivador? Pois bem, o misto de desencanto e optimismo que perpassa nos testemunhos dos 18 cineastas convocados, não esquecendo as referências às muitas atribulações (económicas e artísticas) geradas pelas plataformas de “streaming”, ao mesmo não menosprezando a energia criativa que os filmes, genericamente, mantiveram, inclusive resistindo, ao longo da última década, através da “passagem” da película (sobretudo o clássico 35mm) para as novas câmaras digitais.
Dito de outro modo: as notícias sobre a morte próxima do cinema são francamente exageradas… E quase todos reconhecem que, mais do que os sistemas de produção, são as questões da difusão que continuam a determinar o comportamento dos espectadores e, nessa medida, o impacto real ou ilusório dos filmes.
Curiosamente, recusando qualquer efeito “modernista”, muito menos “vanguardista”, o júri presidido pelo cineasta sueco Ruben Östlund, atribuiu a Palma de Ouro ao brilhante “Anatomie d’une Chute”, de Justine Triet, afinal um clássico drama policial com uma forte componente de “filme-de-tribunal”. Vale a pena registar mais três títulos da secção competitiva que podem resumir as principais tendências de Cannes 2023 — são eles:
— “Il Sol dell’Avvenire” [trailer]: o novo filme de Nanni Moretti volta a colocar um “filme dentro do filme”, com ele próprio a interpretar um cineasta apostado em retratar as convulsões internas do Partido Comunista italiano, em 1956, quando as tropas da URSS puseram fim à Revolução Húngara. O resultado transcende todos os clichés, cruzando a análise política, a comédia e… o musical!
— “Les Herbes Sèches”: Nuri Bilge Ceylan continua a ser um retratista admirável da sua Turquia, neste caso colocando em cena um professor a dar aulas numa zona remota da Anatólia: a fina análise dos desejos e motivações das personagens gera uma narrativa em que a contemplação da solidão se enreda com a parábola política.
— “The Zone of Interest”: tendo como ponto de partida o romance homónimo de Martin Amis (a notícia da morte do escritor inglês coincidiu com a passagem do filme em Cannes), Jonathan Glazer encena o quotidiano da família de Rudolf Höss, quando este oficial de Adolf Hitler administrava o campo de Auschwitz; a ditadura revela-se, assim, através de um universo familiar construído na margem de um sistema de repressão e morte — literalmente, já que do outro lado do muro da vivenda Höss estão os horrores do campo de concentração.
De uma maneira ou de outra, estes e outros títulos de Cannes vão marcar a actualidade cinematográfica dos próximos meses. Esperemos que o mercado português lhes dê a exposição que merecem, já que não basta difundir os filmes — nos tempos que correm, é preciso, mais do que nunca, pensar como fazê-lo, isto é, que tipo de relação se quer estabelecer com os potenciais espectadores.