Não obstante, como se sabe, há cada vez menos professores. Em menos de uma década os portugueses assistiram impávidos e sereníssimos ao sumiço de cerca de trinta mil docentes. A hemorragia não parou e vai mesmo ampliar-se nos próximos anos. Na sua endémica inaptidão para antecipar e planear, Portugal não percebeu nada da história da galinha dos ovos de ouro. Mal se viu a braços com uma crise financeira, precisando de inventar dinheiro, correu a matar a galinha. Desatou a cortar nos “gastos” daquelas coisas que nunca interessam para nada: educação e cultura, essas duas gorduras. O resultado não se fez esperar, porque o tempo é um sujeito teimosíssimo. Estragar tudo não custa nada.
Entre a calúnia e a lisonja
E não nos apressemos a culpar políticos. Em 2019, a GFK realizou uma sondagem para saber qual a profissão mais “confiável” para os portugueses. Os bombeiros ficaram em primeiro lugar, logo seguidos por um empate entre médicos e professores. Infelizmente, ao mesmo tempo que o povo português quer confiar nos professores também não perde oportunidade para os ofender com a mesma animação. É só ler os jornais.
Os professores já estão acostumados a lerem notícias sobre o demasiado que ganham ao fim do mês, as justificações fraudulentas das suas faltas e atestados médicos impostores, abusos em juntas médicas, excessos ditatoriais em sala de aula, assédios ideológicos e de orientação sexual, a enormidade de dias de férias de que beneficiam, falta de profissionalismo e por aí fora.
É uma canseira tentar ainda explicar uma vez mais como se obtêm estas periódicas bofetadas. Na realidade, a paródia faz-se sempre da mesma forma: dá-se à árvore o semblante de floresta, até que se consiga estrumar um oportuno e madeireiro simulacro de incêndio. Entre a calúnia e a lisonja, os professores até já pouco valor dão a estas sondagens que juram a pés juntos que os portugueses gostam muito deles. Como pode Portugal confiar tanto nos professores se está sempre tão disponível para os pisar? Uma coisa é certa: a política detesta os professores.
“Ou nós, ou os professores!”
Ainda há meses um primeiro ministro proclamava que “nem daqui a 10 anos” os professores terão aquilo por que lutam. Hoje o seu partido, numa reumática e dorida genuflexão, reconhece que essas reivindicações constituem, afinal, “uma imperativa questão de justiça”. Ao ver isto, todos os outros partidos imediatamente se esganiçaram para engodar a boa vontade e aliciar o favor eleitoral dos professores. O aviltamento a que os professores têm sido submetidos desde há décadas, seja por governos PSD ou PS, uns convidando-os a abandonar o país, outros inflamando a opinião pública não ajuda nada. Não resta muito capital de confiança para votar nestes partidos. Justamente os mais democráticos que Portugal tem para oferecer.
Quando o país esteve aflito, foram estes os partidos que correram a pedir ajuda aos professores. Os professores compreenderam a emergência e cumpriram a sua parte. Ajudaram no que foi preciso. Com sacrifício pessoal, profissional e familiar emprestaram confiança, tempo e dinheiro. Agora querem de volta aquilo que emprestaram. Sem juros.
Quem serão os seis escolhidos?
O voto dos professores tornou-se especialmente apetecível, sobretudo num contexto em que as sondagens – esses oráculos indecisos - sugerem resultados muitos renhidos.
Terão os partidos razão em namorar o voto dos professores? Mesmo ignorando que o sufrágio dos professores é plural, politicamente sortido, e nem ligando ao facto de poderem representar uma forte influência doméstica no sentido de voto dos seus cônjuges e familiares, é iniludível que terão impacto relevante nas cores partidárias que se sentam num Parlamento.
A equitativa complexidade do sistema eleitoral não permite conclusões empíricas, mas não andaremos muito longe da realidade quando concluirmos que o voto dos cento e cinquenta mil professores que dão aulas em Portugal representa, no universo de 5.5 milhões de eleitores “praticantes”, um cômputo de seis deputados. Ou seja, é sobre um número destes que se devem debruçar os partidos: os professores valem seis dos 230 eleitos.
Numa altura em que a democracia portuguesa atravessa a sua maior crise ideológica e o descontentamento justo dos professores os aconselha a não dar a sua mão a quem sempre a rejeitou, resta a cada um destes eleitores um dilema de difícil resolução. Estão indecisos entre um voto de merecido desacato ou um voto de vigilância democrática. O voto dos professores balança entre o sobressalto e o zelo.
É imperativo que se recorde que a gritaria é sempre legítima quando o poder é desmazelado. E que a algazarra nasce do descuido ideológico e do desleixo ético de um poder instituído durante décadas. Se o mundo atravessa hoje uma pulsão antidemocrática ela nasceu da inépcia prática de uma autoridade ignorante e cúpida. Não proporcionou aos seus cidadãos os serviços e os benefícios que todos os meses, todos os dias, pagaram para ter. Foi a incúria que entregou esta oportunidade aos exaustos e o ouro aos bandidos.
A bolsa ou a vida?
Da defesa à cultura, passando pela justiça e saúde, garantir que o serviço público de um Estado se apetrecha sempre de guelra fresca e mais qualidade representa a mais elementar forma de garantir a sustentabilidade de um regime. Qualquer que ele seja.
Cansados de palavras e ávidos de gestos significantes os professores não se irão apagar gradualmente pelo simples facto de que não reclamam o impossível. São pragmáticos. Não querem tudo para “ontem” como é costume em todos os radicalismos.
Ninguém compreende o afã esgotante e moído em melindrar e desconsiderar os protestos dos professores, sem razão que a evidência financeira sustente. Mudar o sentido de voto para vencer uma batalha representa uma opção real que foi colocada aos professores. Escolher entre a bolsa e a vida pode levar a que se ganhe uma batalha, mas também a que se perca uma guerra. Será que vamos a tempo?