Esquecidos

“Nascer ou ter um parto é arriscar”: a saúde materna e infantil é uma emergência esquecida na crise da República Centro-Africana

“A situação requer um investimento ambicioso por parte de todas as entidades internacionais, de forma a fortalecer o acesso a serviços de saúde reprodutiva. É inaceitável que tantas mulheres e bebés estejam a perder a vida todos os dias por questões facilmente evitáveis”, sublinha o coordenador-geral da Médicos Sem Fronteiras na República Centro-Africana, René Colgo.

“Nascer ou ter um parto é arriscar”: a saúde materna e infantil é uma emergência esquecida na crise da República Centro-Africana
Barbara Debout/ MSF


Décadas de instabilidade e violência armada na República Centro-Africana (RCA) contribuíram para que cuidados médicos essenciais não estejam ao alcance de muitas mulheres e bebés recém-nascidos. Ofuscada pela situação de segurança no país, esta emergência de todos os dias é uma prioridade para as equipas da organização médico-humanitária Médicos Sem Fronteiras (MSF).


Divine está há horas em doloroso trabalho de parto, a mão direita a agarrar a cabeceira da cama, a esquerda a amassar o pano cor de laranja e verde que lhe envolve os quadris. O bebé já devia ter nascido e Divine está exausta. Na ala de partos do hospital comunitário de Bangui, a capital da RCA, a enfermeira acabou de lhe administrar oxitocina, uma hormona que acelera a frequência e intensidade das contrações.


Nesta unidade dedicada a partos de alto-risco, as mulheres são acompanhadas de perto por profissionais médicos, os quais verificam o estado de saúde da grávida e os batimentos cardíacos do bebé a cada 30 minutos. Se o trabalho de parto se tornar prolongado, a grávida pode ser levada para as salas de cirurgia para que lhe seja feita uma cesariana.


Este tipo de cuidados com observação atenta e frequente está longe de ser comum para as mulheres em trabalho de parto na RCA. Num país com enorme escassez de instalações de saúde e de pessoal médico, poucas grávidas têm acesso a cuidados obstétricos adequados.


“Muitas mulheres não vão aos centros de saúde para o parto, antes dão à luz em casa”, explica a parteira da MSF Adèle Guerde-Seweïen, que trabalha no hospital comunitário de Bangui, conhecido como CHUC. “Nessas situações, as complicações podem facilmente resultar na morte da mãe ou do bebé”.


Uma situação extrema


Um grito, bem mais alto do que todas as outras vozes a falarem alto, ecoa pela ala do hospital. Uma mulher acabou de saber da morte da irmã que estava grávida. Minutos antes, a grávida tinha sido levada de urgência para o hospital e encaminhada prontamente para a sala de cirurgia. Mas era tarde demais. A equipa médica fez tudo o que podia para a estabilizar, mas só conseguiu salvar o bebé.


“Esta tragédia não teria acontecido se ela tivesse tido acesso a cuidados médicos atempadamente”, frisa Adèle Guerde-Seweïen.

A saúde materna e neonatal é uma grande emergência de saúde na RCA. As taxas de mortalidade materna e infantil no país estão entre as mais elevadas no mundo inteiro. Os dados estatísticos mais recentes (do Banco Mundial), mostram que as mulheres na República Centro-Africana têm 138 vezes mais probabilidades de morrer devido à gravidez ou a complicações no parto do que na União Europeia, e um bebé neste país tem 25 vezes mais probabilidades de morrer antes de completar um ano do que se tivesse nascido na Europa.


15 ginecologistas para seis milhões de habitantes


“Na RCA nascer ou ter um parto é arriscar”, sustenta Norbert Richard Ngbale, professor e obstetra-ginecologista no departamento de maternidade e neonatologia do CHUC. “Há apenas cerca de 15 ginecologistas no país, para uma população de seis milhões de pessoas. Há uma falta enorme de pessoal qualificado, especialmente nas zonas rurais, onde se tem principalmente parteiras tradicionais que não são treinadas para detetar complicações no parto”, avalia ainda.


A maioria das mortes maternas na RCA estão relacionadas com abortos inseguros, mas também com gravidezes que ocorrem demasiado cedo – quando a rapariga ou a mulher não têm ainda a maturidade física necessária para ter um parto em segurança – ou com partos que ocorrem em casa. Muitas destas mortes podiam ser evitadas se os cuidados de saúde estivessem disponíveis, seja em termos de apoio à gravidez ou na prestação de planeamento familiar. A emergência médica crónica na RCA é também alimentada pela pobreza extrema; embora os cuidados de saúde materna e infantil sejam oficialmente gratuitos na RCA, muitas vezes estão disponíveis apenas para quem os pode pagar.


“Num país onde 70% da população vive com menos de dois dólares por dia, todas as decisões são ponderadas do ponto de vista financeiro, mesmo que isso coloque a saúde em risco”, avança o coordenador-geral da MSF na República Centro-Africana, René Colgo. “Para as pacientes, ir ao hospital é uma despesa. E as pessoas não têm dinheiro para pagar cuidados pré-natais, nem o transporte para o hospital, tão pouco o parto. Muitas mulheres consideram que é melhor ir para o hospital no último momento, se é que chegam a ir. Por isso, defender a prestação de cuidados gratuitos é vital”, explica.


“Desta vez quis evitar qualquer risco”


Mãe de oito crianças e tendo passado por complicações no parto do sétimo filho, Carine Dembali não quis correr o risco de chegar tarde demais ao hospital desta vez.


“Com exceção do meu primeiro filho, dei sempre à luz em casa por falta de dinheiro”, recorda. “Mas da última vez houve um problema. O meu bebé saiu mas a placenta não. A minha família trouxe-me logo para o Castor [um hospital com ala de maternidade que a MSF geria anteriormente] , onde não tive de pagar nada. Por isso é que desta vez quis evitar qualquer risco. Fui ao hospital perto da minha casa antes do parto. E lá verificaram que o cordão [umbilical] estava a ameaçar o meu bebé e transferiram-me para aqui para uma cesariana.”


As alas de maternidade e de neonatologia no CHUC, totalmente renovadas pela MSF antes de abrirem em julho de 2022, providenciam cuidados de emergência a grávidas e a recém-nascidos em estado crítico. Desde meados de julho até meados de dezembro do ano passado, equipas da MSF e do Ministério da Saúde prestaram cuidados a 3.084 grávidas e foram admitidos 860 bebés na ala de neonatologia, incluindo 239 que nasceram prematuros.


Poucos hospitais no país fornecem serviços similares a estes, e entre os quais se inclui uma unidade de cuidados intensivos para bebés prematuros e recém-nascidos com problemas respiratórios ou outras complicações.


Archange, que nasceu com apenas 28 semanas (comparando com uma gestação normal de 38 a 40 semanas), lutou pela vida durante 45 dias na unidade de cuidados intensivos do CHUC. A equipa médica ficou tão impressionada com a luta do bebé para sobreviver que lhe deram a alcunha de “pequeno general”.


“Ele pesava 800 gramas quando nasceu”, descreve a mãe, Stephanie. “A irmã gémea dele morreu, infelizmente, ao fim de duas semanas, e cheguei a pensar que o ia perder a ele também.”


A equipa da MSF persuadiu a jovem mãe a tentar o método de “cuidados canguru”, em que os bebés prematuros são mantidos junto ao corpo da mãe 24 horas por dia. O contacto prolongado de pele a pele mantêm-os aquecidos, proporciona-lhes equilíbrio emocional constante e, em última análise, melhora as probabilidades de sobrevivência.


“Quando ele saiu dos cuidados intensivos, começámos a fazer o método canguru”, conta Stephanie. “Eu estava stressada e nada convencida. Mas depressa vi que ele estava a ficar cada vez melhor, e que o estado de saúde dele melhorava. Agora pesa 1,5kg. Em breve poderei voltar para casa com ele.”


Uma prioridade para as equipas MSF


A situação crítica na RCA no que toca a cuidados de saúde materna e infantil levou a MSF a providenciar serviços gratuitos de emergência obstétrica a mulheres e recém-nascidos em locais por todo o país.


A organização médico-humanitária também presta formação a pessoal do Ministério da Saúde e tem vindo a renovar e equipar instalações médicas para que nelas se possa disponibilizar cuidados com um bom padrão de atendimento. Em 2021, as equipas da MSF prestaram assistência a quase 19.600 mulheres no parto, incluindo 1.020 por cesariana, e 1.900 bebés recém-nascidos foram tratados em unidades neonatais apoiadas pela MSF em todo o país.


Mesmo assim, é necessário maior apoio para que estes serviços essenciais para as mulheres e bebés estejam disponíveis no país inteiro.

“A situação requer um investimento ambicioso por parte de todas as entidades internacionais, de forma a fortalecer o acesso a serviços de saúde reprodutiva”, insta René Colgo. “É inaceitável que tantas mulheres e bebés estejam a perder a vida todos os dias por questões facilmente evitáveis”, considera o coordenador-geral da MSF na República Centro-Africana.