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"Consegui escapar do meu raptor e da terrível tortura"

Desde 2012, a Médicos Sem Fronteira fornece apoio médico e humanitário a pessoas afetadas pela violência no México, incluindo a migrantes em deslocação pelo país. A organização médica-humanitária recolheu testemunhos destas vítimas de tortura e de outros tratamentos cruéis.

"Consegui escapar do meu raptor e da terrível tortura"
Yesika Ocampo/ MSF

A Médicos Sem Fronteira (MSF) fornece apoio médico e humanitário a pessoas afetadas pela violência no México desde 2012, incluindo a migrantes em deslocação pelo país. Desde então, as equipas da MSF têm observado um agravamento dos níveis de violência sofridos pelas pessoas, tanto nos países de origem, como durante a viagem.

“Conforme os testemunhos das pessoas a quem prestamos apoio, a violência vem, principalmente, do crime organizado. Enfrentam tortura, um tratamento cruel e desumano, violência sexual, roubos, raptos e muito mais”, frisa a coordenadora-geral do projeto da MSF no México, Gemma Domínguez.

“As pessoas afetadas por transtornos físicos e mentais graves que as incapacitam chegam ao centro de cuidados a necessitar de proteção e de uma resposta de saúde interdisciplinar sem custos, que é difícil de obter no México”, acrescenta.

Cuidados abrangentes para sobreviventes de tortura

Desde 2017, a MSF providencia cuidados abrangentes a 602 sobreviventes de tortura e de outros tratamentos cruéis no Centro de Apoio Integral (CAI) na Cidade do México, através de um modelo de cuidados que inclui médicos, psicólogos, psiquiatras, enfermeiros, fisioterapeutas, assistentes sociais e outros profissionais de saúde. Trabalham em conjunto para desenvolver um processo terapêutico que capacita os sobreviventes e lhes restaura a dignidade.

“O CAI é também um espaço onde prestamos outros serviços: abrigo, assistência legal, proteção, educação e apoio à entrada no mercado de trabalho, em parceria com outras entidades na Cidade do México. Podemos dizer que o CAI é um centro especializado para sobreviventes de tortura”, explica Domínguez.

No final de 2021, a MSF adotou uma estratégia compreensiva, adaptada ao contexto mexicano, para prestar apoio e alcançar sobreviventes de tortura e migrantes. Desta forma, as equipas providenciaram cuidados a 809 sobreviventes nas localidades de Tapachul, Palenque, Coatzacoalcos, Nuevo Laredo e Piedras Negras. São também fornecidos cuidados abrangentes e interdisciplinares nestas localidades onde os serviços estão disponíveis.

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Os traumas da viagem

Maynor tem 30 anos e é oriundo das Honduras. Foi assistido pela Médicos Sem Fronteiras na cidade de Tapachulas, no estado de Chiapas. Fugiu do país de origem, porque era constantemente ameaçado e intimidado – enfrentou tortura nas Honduras, mas não foi a última vez. Durante a viagem, num centro de detenção nos Estados Unidos enfrentou o mesmo ato de violência extrema, antes de ser deportado com o filho de seis ao abrigo do Título 42. Dois anos mais tarde, viaja novamente, só que desta vez com a companhia da mulher e de dois outros filhos.

“Não conseguíamos parar de chorar quando nos levaram para o avião de volta para as Honduras. Ninguém queria voltar”, recorda Maynor. “Aqui no México passamos por dificuldades e sofremos imenso. Os problemas psicológicos estão sempre connosco, assim como as insónias, a depressão e a ansiedade. Todos os meus filhos adoeceram. Obter apoio médico aqui não é fácil e há imensa discriminação contra nós.”

Os efeitos psicológicos da tortura podem incapacitar sobreviventes de tomar decisões no dia a dia. Os sintomas que apresentam incluem stress pós-traumático e stress agudo, que podem ser agravados pelo luto, quando perdem familiares.

Pedro, outro paciente da MSF, pertence a uma comunidade indígena hondurenha e é um ávido ambientalista. Foi atingido com uma bala na cabeça durante um ataque em que assassinaram um membro da família. Pedro conseguiu fugir e sobreviveu.

“Muitos migrantes começam a dedicar-se ao cultivo de drogas, porque não há outra opção”, explica. “Há raparigas que são abusadas sexualmente, mães e pais que vendem crianças a quem oferece mais dinheiro. Sou contra tudo isto e foi por isso que levei um tiro na cabeça. O meu sistema nervoso ficou comprometido, mas aqui estou eu: vivo. Preciso de proteger a minha família e tomar conta da minha saúde física e psicológica.”

As consequências físicas da tortura e violência extrema são, muitas vezes, bastante graves. Os sobreviventes necessitam frequentemente de procedimentos cirúrgicos e de fisioterapia de reabilitação, e muitos ficam com lesões a longo prazo nos membros e órgãos.

“Felizmente, consegui escapar do meu raptor e da terrível tortura a que fui submetida”, conta Carolina, sobrevivente mexicana de feminicídio. “Os efeitos são emocionais e físicos. Fiquei com vários ferimentos que afetam a minha mobilidade e, psicologicamente, fiquei com stress pós-traumático e tenho pesadelos recorrentes. Consegui ter um pouco de justiça quando o meu atacante foi para a prisão, mas os meus problemas de saúde causaram muitos problemas na minha família. Preciso de ficar bem. Para todos aqueles que também sofreram violência extrema no México, não há outro sítio onde serão prestados cuidados de forma tão abrangente como na Médicos Sem Fronteiras. Pela primeira vez, senti que fui tratada como um ser humano, sem passar novamente por traumas.

Em 2022, o Centro de Apoio Integral forneceu cuidados especializados a 100 pessoas, das quais 78.6 por cento eram oriundas da América Central, 15.71 por cento do México e 5.6% da América do Sul. Mais de metade (52.8%) eram mulheres, 37.7% homens e 9.4% pessoas com outras identidades de género.

A caminho do México, Gustavo enfrentou muita intimidação e uma tentativa de violação, após ter fugido das ameaças de grupos criminosos nas Honduras.

“Tem sido muito difícil para me adaptar. Penso que é mais difícil para mim, porque pertenço à comunidade LGBTQI+. Fui discriminado, porque sou gay e porque sou migrante”, sublinha.

A vida continua, num estado de convalescença

“Estes cuidados abrangentes e serviços de apoio têm de ser prestados a todos os sobreviventes”, frisa Domínguez. “Nestes últimos anos, as nossas equipas têm acompanhado estas pessoas durante o processo de recuperação, para que possam continuar com a vida.”

As consequências da tortura são difíceis de curar, mas com cuidados adequados é possível.

“Durante estes cinco anos, as equipas não só ouviram histórias de crueldades enfrentadas pelos migrantes nos países de origem e durante a viagem, como também observaram os enormes desafios que os sobreviventes têm para aceder a um tratamento compreensivo.”

José Luis é um jovem mexicano sobrevivente de tortura, que completou o tratamento com a MSF.

“Depois de tudo o que aconteceu comigo, comecei a sentir que estava imerso num oceano. Senti que me estava a afundar e que estava tudo a complicar-se. Estava num lugar escuro e profundo, mas consegui sair. Como sempre, na vida, há boas e más alturas. No fim, tudo se resolve. Sentia que estava num inferno, mas agora estou aqui a falar. Sou uma voz: a voz de alguém que conseguiu recuperar.”

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