Guerra Rússia-Ucrânia

"Crime de guerra”: milhares de crianças ucranianas órfãs estão a ser adotadas na Rússia

A organização não-governamental Human Right Watch diz tratar-se de “um crime de guerra”. Afirma ainda que esta situação está a acontecer "apesar das normas internacionais proibirem a adoção internacional durante conflitos armados".

"Crime de guerra”: milhares de crianças ucranianas órfãs estão a ser adotadas na Rússia
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Milhares de crianças ucranianas que viviam em orfanatos foram transferidas à força para a Rússia ou para territórios ocupados e muitas constam de listas de sites de adoção, denunciou esta segunda-feira a Human Rights Watch (HRW).

A organização de defesa dos direitos humanos, que divulgou esta segunda-feira um relatório intitulado "Devemos fornecer uma família, não reconstruir orfanatos", apresenta casos documentados de transferências forçadas de crianças de instituições ucranianas para a Rússia ou para territórios ocupados pela Rússia.

"Um crime de guerra", aponta a Human Rights Watch.

Com base em dados do Governo ucraniano, a organização referiu que 100 instituições que abrigavam mais de 32.000 crianças antes de 2022 estão agora em regiões sob ocupação parcial ou total da Rússia ou que Moscovo declarou anexadas.

"Declarações de autoridades russas, de ativistas e de advogados ucranianos e ainda notícias divulgadas pela imprensa indicam que pelo menos vários milhares de crianças foram transferidas à força para territórios ocupados ou para a Rússia", avançou a HRW, lembrando que o parlamento russo adotou, em maio de 2022, legislação que permite que as autoridades concedam nacionalidade russa a crianças ucranianas, facilitando a sua guarda e adoção por famílias na Rússia.

Além disso, adiantou a organização, pelo menos uma página de internet russa para adoções apresenta crianças de regiões ucranianas, sendo que autoridades russas admitiram que centenas de crianças ucranianas foram adotadas.

Isto está a acontecer "apesar de as normas internacionais proibirem a adoção internacional durante conflitos armados", sublinhou a HRW.

Por isso, apelou a organização, "a Rússia deve conceder acesso às Nações Unidas e a outras agências imparciais para que se identifique essas crianças, se monitorize o seu bem-estar e se facilite o seu regresso à Ucrânia".

"A guerra na Ucrânia teve consequências devastadoras para crianças que estavam em instituições residenciais" como orfanatos, acrescentou a HRW, avisando que "muitas crianças foram transferidas à força para a Rússia e separadas das suas famílias, sofrendo experiências traumáticas de guerra e deslocamento".

A Ucrânia tinha, antes da invasão da Rússia, o maior número da Europa de crianças em instituições, ultrapassando, de acordo com dados do Governo, os 105.000 menores.

A agência das Nações Unidas dedicada à infância, a Unicef, acrescentou que quase metade eram crianças com deficiências.

Mais de 9 em cada 10 destas crianças que estavam em instituições da Ucrânia têm pais com direitos plenos, refere a HRW.

"Foram institucionalizadas devido à pobreza das suas famílias ou às circunstâncias difíceis da vida ou porque a criança tem uma deficiência e as instituições foram apresentadas como a melhor opção", explica a organização.

"Na realidade, como as autoridades ucranianas reconheceram e, como demonstram décadas de estudos, as instituições são inerentemente prejudiciais às crianças. A lei de direitos humanos exige a desinstitucionalização de todas as crianças, inclusive durante conflitos armados".

A Ucrânia deve, com o apoio internacional, "mapear urgentemente o paradeiro de todas as crianças de instituições e garantir o seu bem-estar", pediu a HRW.

Embora a maioria das crianças em instituições tenha sido enviada para casa e para as suas famílias quando os ataques russos começaram, "milhares foram levadas para outras instituições e outras tantas estão em paradeiro desconhecido", salientou.

"A Rússia é responsável pela crise enfrentada por estas crianças [transferidas], mas a guerra aumenta a urgência da Ucrânia, com o apoio de governos estrangeiros e agências humanitárias, parar de institucionalizar crianças e expandir os cuidados familiares e comunitários", defendeu a HRW.

"As crianças ucranianas que foram alojadas em instituições da era soviética enfrentam agora riscos extremos devido à guerra da Rússia na Ucrânia", alertou um dos diretores da unidade de direitos das crianças da organização, Bill Van Esveld, citado no relatório.

"É preciso haver um esforço internacional coordenado para identificar e devolver as crianças deportadas para a Rússia, mas a Ucrânia e os seus aliados devem garantir que todas as crianças que foram ou permanecem institucionalizadas sejam identificadas e recebam apoio para voltar a viver com as suas famílias e nas comunidades", concluiu.

Crianças ucranianas são reeducadas com visões pró-Rússia

A transferência de crianças ucranianas para a Rússia visa incutir-lhe uma visão pró-Moscovo e até treino militar, segundo um relatório que estima em mais de seis mil os menores colocados em 43 campos de reeducação ou orfanatos.

Segundo o relatório Programa Sistemático da Rússia para a Reeducação e Adoção de Crianças da Ucrânia, lançado em fevereiro pelo Laboratório de Pesquisa Humanitária da Escola de Saúde Pública de Yale (HRL), o estudo introduz "provas que indicam possíveis violações do direito internacional" e descobertas de que a maioria dos campos está envolvida "em esforços de reeducação pró-Rússia" e alguns forneceram inclusive "treino militar para crianças", ou suspenderam a entrega aos seus pais na Ucrânia.

Produzido como parte do Observatório de Conflitos, o relatório afirma que alguns dos centros são acampamentos de verão pré-existentes, localizados junto ao Mar Negro, na Crimeia anexada e na Rússia continental, incluindo Moscovo. Onze dos acampamentos são localizados a mais de 800 quilómetros da fronteira da Ucrânia, dois na longínqua Sibéria, e um no extremo oriente do país.

"O objetivo principal dos campos parece ser a reeducação política", em que pelo menos 32 (78%) dos campos usam "esforços sistemáticos de reeducação que expõem crianças da Ucrânia a atividades académicas, culturais, patrióticas e culturais centradas na Rússia e/ou educação militar", com vista a integrá-las na visão do Governo russo sobre a cultura nacional, história e sociedade.

A Yale HRL identificou pelo menos dois campos que abrigavam crianças supostamente órfãs e que mais tarde foram colocadas em famílias adotivas na Rússia. Vinte crianças foram entregues a famílias na província de Moscovo e matriculadas em escolas locais.

No relatório, uma palavra-chave é a coação junto dos pais para que as crianças sejam transferidas, incluindo assinaturas por procuração, noutros casos houve alegações de violação de prazos de permanência e procedimentos para o reencontro com os filhos, e as recusas de progenitores foram basicamente ignoradas.

"Em muitos casos, a capacidade dos pais de fornecer consentimento significativo pode ser considerada duvidosa, pois as condições de guerra e a ameaça implícita das forças de ocupação representam condições de coação", destaca o documento.

O retorno de crianças de pelo menos quatro campos foi suspenso ou estão detidas após a data prevista, prossegue o documento, havendo pais que também descreveram que não conseguiram obter informações sobre o estado ou o paradeiro dos seus filhos.

Apesar de apontar seis mil crianças transferidas, o relatório admite que o número pode ser bastante maior, sendo incerto quantas foram devolvidas, numa operação iniciada logo após a invasão da Ucrânia em 24 de fevereiro do ano passado, em que "todos os níveis do governo da Rússia estão envolvidos" e coordenada centralmente por Moscovo.

Para chegar a estas conclusões, a Yale HRL usou a agregação e verificação cruzada de várias fontes para entender o sistema de realocações, centros, reeducação, adoções e lares adotivos, incluindo redes sociais, anúncios e publicações do governo e reportagens nos locais, além da geolocalização de instalações através de fotografias, vídeos e descrições de crianças da Ucrânia no local e das suas experiências, bem como dos pais, e ainda imagens de satélite de alta resolução.

Além da transferência e da criação de centros de reeducação, as crianças ucranianas começam a fazer parte também da propaganda russa.

Num comício recente para celebrar o exército, num estádio em Moscovo, uma criança ucraniana de 13 anos, que vivia em Mariupol, cidade tomada pelas tropas da Rússia há cerca de um ano, surgiu em lágrimas em palco, agradecendo ter sido salva pelas forças ocupantes.

A estação CNN Internacional procurou saber mais sobre a história de Anna Naumenko, ou simplesmente, Anya, que perdeu a mãe no cerco de Mariupol, falando com uma amiga, com a qual partilhou refúgio num abrigo subterrâneo durante três meses e que questiona as condições de segurança em que ela estará viver, depois de ter sido entregue a uma família de acolhimento, e sugerindo que foi vítima de coação.

"Tive medo de ver aquilo. Não podem usar crianças deste modo", comentou Katerina Pustovit, que vive agora na Alemanha. A família de Anya não quis comentar por medo e as autoridades de Moscovo não responderam às perguntas da CNN.