Inteligência Artificial

AI pode servir a justiça, mas ética (ainda) é exclusivamente humana

Pode a Inteligência artificial substituir um juiz? Não, mas pode ajudá-lo. Ferramenta é útil para encurtar tempos da justiça, mas especialistas alertam para risco de enviesamentos.

AI pode servir a justiça, mas ética (ainda) é exclusivamente humana
Christine Balderas/Getty Images

Pode a inteligência artificial (IA) tornar a justiça mais célere? As possibilidades são promissoras, desde a possibilidade de automatização de tarefas de rotina à capacidade de pesquisar mais eficazmente grandes volumes de informação, que libertam tempo aos humanos.

A nível burocrático e logístico, a IA pode mudar muita coisa. Há muita litigância, muitos casos, muitos processos, muita informação instalada, e a organização disso através de automatismos é essencial”, aponta Nuno Coelho, juiz conselheiro do Tribunal de Contas e coordenador do think tank organizado pela Associação Sindical dos Juízes para apresentar ao Governo e ao Presidente da República um plano de reforma profunda da Justiça.

“Ao nível destas tarefas repetitivas de grande alcance numérico que, no fundo, nos fazem despender muito tempo naquilo que não é criativo e que nos cansa, pelo facto de serem trabalho rotineiro, podemos entregar ao copiloto - à máquina.”

IA pode ajudar os juristas na organização e gestão, a classificar dados, preparar casos ou simplificar procedimentos, sobretudo nos megaprocessos. O caso muda de figura quando chegamos à sala de tribunal. O juiz tem de ser humano, defende Nuno Coelho.

“A reflexão sobre a decisão judiciária, a aproximação sobre os níveis de culpa, a compatibilização da moral com a ética e com o direito, saber qual é a consequência da decisão, isso, no fundo, é um fator humano que tem de estar ali presente e não podemos prescindir dele.”

A inteligência artificial até pode ajudar no aconselhamento jurídico, como no caso do Guia Prático da Justiça, uma espécie de Chat GPT para questões simples sobre temas como o casamento, divórcio e criação de empresas, mas não em casos mais complexos.

“Os níveis de inteligência artificial, eventualmente, podem ser mais questionáveis sobretudo na justiça criminal, na justiça constitucional, em ponderações que, necessariamente, têm uma grande implicação social, ética, um grande impacto também comunitário”, considera o juiz.

A AI é justa? O risco dos ‘fundos brancos’

As experiências conduzidas com inteligência artificial nesta área também revelaram o risco de enviesamento, com as máquinas a tomar decisões preconceituosas motivadas por generalizações.

As bases de dados usadas para treinar os sistemas de inteligência artificial são como “caixas negras em que nós não sabemos o que está lá”, explica Joana Gonçalves de Sá, investigadora do Laboratório de Instrumentação e Física Experimental de Partículas. “E mesmo depois de termos os resultados não sabemos olhar para trás e perceber porquê. Portanto, há aqui um lado, mesmo, de brincar com o fogo.”

Um exemplo concreto do perigo de atribuir decisões aos algoritmos demonstra-se com o caso dos chamados “fundos brancos”.

O conceito resulta de um estudo académico: uma máquina treinada para distinguir cães de raça Husky de lobos ficou (aparentemente) bastante rigorosa nesta diferenciação. No entanto, descobriu-se mais tarde que o critério usado não eram as características de cada animal apresentado, mas sim o fundo em que a fotografia fora tirada - nas fotografias com fundo branco, com neve, a máquina assumia que o animal representado era um lobo.

Joana Gonçalves de Sá recorda outro exemplo deste enviesamento, que contribuiu mesmo para a queda do governo nos Países Baixos, quando foi usado um algoritmo para aferir suspeitas de fraude na atribuição de apoios sociais.

“Eles retiraram uma série de informação e tiveram o máximo de cuidados que eles achavam que deviam ter, mas a verdade é que o algoritmo identificava predominantemente famílias pobres e não holandesas. Portanto, uma destas características, o ‘fundo branco’ deste algoritmo, era ter um apelido não holandês.”

Apesar de Portugal já ter começado a implementar algumas ferramentas de AI na Justiça, fica aquém de muitos outros países. “Temos um caminho a percorrer. Acho que temos de acelerar os motores”, defende o juiz Nuno Coelho.


Veja na íntegra os dois episódios da Grande Reportagem: “Penso, IA existe” e “Existe, IA pensa!”