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Siyabulela Mandela: "Ser ativista faz parte do meu passado e do meu ADN"

Vem, pela segunda vez, a Lisboa sem tempo para fazer turismo. O bisneto de Nelson Mandela é um dos oradores da edição deste ano da Web Summit. Vem falar de ativismo e lembrar as violações dos direitos humanos na Palestina. Com um apelido de peso na luta pela paz, Siyabulela Mandela afirma que é a sua responsabilidade seguir o legado do bisavô.

Siyabulela Mandela: "Ser ativista faz parte do meu passado e do meu ADN"
Filipa Traqueia

Como se tornou num ativista?

O trabalho de ativista faz parte do legado da minha família, em particular o meu bisavô, Nelson Mandela. Ele foi um conceituado ativista pelos direitos humanos, pela paz e pela reconciliação. Para mim, ser ativista faz parte do meu passado e do meu ADN. Significa que eu não posso ficar sentado enquanto existe tanta injustiça a acontecer em partes diferentes do mundo. Por isso é que eu digo que sou ativista desde o berço. Além disso, ter nascido um país onde há violações dos direitos humanos, onde os direitos da maioria dos negros são suprimidos e subjugados pelo regime do Apartheid e da ideologia da supremacia branca, fez com que eu fosse ativista.

Qual a importância da luta do seu bisavô nos seu trabalho atualmente?

Nelson Mandela bateu-se e defendeu os direitos humanos, pela paz e pela reconciliação. Eu penso que o trabalho que fazemos é de extrema importância. Ser um ativista significa que também incentivamos e motivamos diferentes comunidades a falar contra algumas das injustiças que vemos dentro da própria comunidade. É por isso que, por exemplo, congratulo a Web Summit por, apesar de ser uma cimeira de tecnologia e inovação, criar uma plataforma que permite ativistas - seja de direitos humanos, do clima, da paz - discutirem assuntos da atualidade e da justiça social para informar a sociedade de algumas das injustiças que estão a acontecer pelo mundo

Trabalha em conjunto com jornalistas. Estamos muito habituados à ideia de um jornalista ser imparcial. Como pode um jornalista ser também um ativista?

Acredito que, por definição, um jornalista é um ativista porque luta pela verdade. E tem de ser imparcial, livre e justo na sua reportagem. Isso, só por si, é ser um ativista. Significa que tem de reportar problemas objetivamente sem tomar partido, apesar de qualquer medo ou favor. Não é um jornalista se não falar ou reportar diferentes formas de injustiça que estão a acontecer na sua comunidade, se apoia um determinado partido político ou é afiliado num partido político. Isso não é jornalismo porque significa que não é imparcial, que será uma reportagem enviesada. No trabalho que fazemos na [organização] Jornalistas pelos Direitos Humanos, nós treinamos jornalistas a abordar os problemas relacionados com direitos humanos, para os reportar de forma mais efetiva, imparcial e prática. Essa é a chave no jornalismo.

Falemos um pouco do impacto das redes sociais no ativismo. Tivemos, há uns anos, a Primavera Árabe em que as redes sociais tiveram uma importância crucial, entre outros exemplos. Estas plataformas podem promover o ativismo?

As redes sociais são importantes e podem ser utilizadas para promover mudanças sociais nas nossas comunidades. No movimento da Primavera Árabe, por exemplo, as redes sociais foram usadas como principal impulsionador do movimento que levou a grandes mudanças na região, denunciando Governos que estavam a violar direitos humanos, a discriminar contra comunidades e pessoas do Médio Oriente. Também vimos como as redes sociais permitiram avançar com o Movimento Black Lives Matter nos Estados Unidos e no resto do mundo. Penso que, quando utilizadas de uma forma correta e nas mãos certas, as redes sociais podem ser a chave para a mudança social na nossa comunidade. Mas não podemos ser ingénuos e pensar que as estas plataformas não serão usadas e transformadas em "armas" para propagar novas formas de injustiça e violações de direitos humanos. Vimos, por exemplo, como Donald Trump usou as redes sociais para promover uma agenda racista, para partilhar fake news e desinformação. Nós sabemos o risco que a desinformação traz para o mundo em que vivemos. Temos também de ser críticos na forma como as redes sociais são usadas.

Como podemos lutar contra esta desinformação que é partilhada nas redes sociais e na internet?

Eu acredito que é crucial o nosso trabalho de orientar jornalistas para saberem desmitificar a desinformação. Se os jornalistas conseguirem desmitificar a desinformação irão poder informar as comunidades e identificar quando uma determinada informação que foi partilhada nas redes sociais é fake news ou desinformação. Esse é o trabalho que a [organização] Jornalistas pelos Direitos Humanos tem feito, através de um projeto que pretende mobilizar os meios de comunicação para lutar contra a covid-19, através da formação de jornalistas para desmitificar desinformação relacionada com a pandemia. Temos de perceber que a informação salva vidas e, por isso temos, temos de travar o que chamamos pandemia de desinformação. Como jornalistas, temos de garantir que a nossa história é credível, é imparcial, reporta factualmente. Isso é o que temos de fazer.

SIC Notícias

Em que projetos de ativismo está a trabalhar atualmente?

Neste momento trabalho para a Jornalistas para o Direitos Humanos, uma organização que atua na ligação entre a defesa dos direitos humanos e o desenvolvimento dos media. Nós trabalhamos em zonas afetadas por conflitos e pela governação instável, orientando jornalistas para que saibam como defender e reportar as questões de direitos humanos. Desta forma, poderão informar as pessoas das violações dos direitos humanos que existem dentro das comunidades, permitindo que se mobilizarem-se e avancem com a agenda pelos direitos humanos. Este é o tipo de trabalho que fazemos. Neste momento estou envolvido num projeto chamado “Mobilização dos media no combate à covid-19” na África do Sul, Uganda, Tanzânia, Quénia e também em países do Oeste africano como Gana, Libéria, Gâmbia e Serra Leoa e no norte, no Mali e na Tunísia, e em partes do meio oriente, como a Jordânia.

Para mim, este é, em parte, a continuação do trabalho de Nelson Mandela. É isto que faço e é por isso que estou na Web Summit. Venho falar da necessidade do ativismo, particularmente para amplificar as vozes da luta das pessoas da Palestina contra o Apartheid israelita. Vamos fazer com que o mundo não se esquecer da Palestina e das injustiças que estão a acontecer lá. Nelson Mandela uma vez disse que a liberdade de África do Sul não estaria completa até que as pessoas da Palestina sejam livres. E o que está atualmente a acontecer, o que Israel está a fazer, pode ser facilmente identificável como Apartheid e crimes contra a humanidade e contra as pessoas da Palestina.

Voltou a referir o legado de Nelson Mandela. Sente o peso do apelido do seu bisavô no seu trabalho de ativista?

Eu acredito que aquilo por que Nelson Mandela lutou é importante e eu acho que o legado que ele deixou para mim, e para os que concordam com a sua luta, é muito importante. Eu acredito que é minha responsabilidade continuar o seu legado como defensor dos direitos humanos, da paz e da reconciliação. Todas as pessoas devem ter a oportunidade de apreciar os direitos humanos. Há locais onde esses direitos humanos são violados, onde são negados, onde certos grupos veem negada a sua própria dignidade, a sua própria identidade – como estamos a ver na Palestina, neste momento, e o que Israel está a fazer contra os palestinianos. Esse é o trabalho importante que Nelson Mandela e as gerações anteriores a ele começaram e é a nossa responsabilidade coletiva, como geração, continuar este trabalho e legado. Não podemos ter as nossas crianças, daqui a 20 ou 30 anos, a continuarem a falar de injustiças e discriminação racial. Não podem ter de continuar a lutar contra estes problemas, como os nossos antepassados lutaram, como a nossa geração atualmente luta. Temos uma responsabilidade coletiva de nos elevar em defesa das liberdades pelas quais eles lutaram, os sacrifícios que fizeram para que nós possamos apreciar as liberdades que temos.

Vem para a Web Summit, mas vai conseguir visitar Lisboa?

Infelizmente, quando venho a Lisboa ando sempre por esta área [Parque das Nações] porque estou sempre envolvido em encontros e em reuniões com partes da sociedade, do Governo e dos media. Por isso, nunca consigo fazer turismo na cidade. Desta vez, estarei completamente ocupado até quinta-feira e, na sexta-feira, tenho voo de volta para África do Sul. Esta é a minha segunda vez em Portugal e nunca consegui visitar o país. Gostava de ir ao Porto, por exemplo, ouvi dizer que é uma cidade bonita, mas ainda não tive oportunidade para o fazer. São sacrifícios que temos de fazer.

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