Desde maio até novembro, que Espanha tem estado num tumulto político. Uma vitória não garantiu um cargo de primeiro-ministro e um segundo lugar levou a acordos entre partidos políticos inéditos - e há quem acuse de “ilegais”. Os espanhóis encheram as ruas das principais cidades do país e prometem voltar a entupir as artérias e veias cosmopolitas até Pedro Sánchez desistir. Quais são os acontecimentos principais que têm inquietado o nosso vizinho?
Enquanto a terra em Portugal tremia e os portugueses se preocupavam com a crise política no seu país, a vizinha Espanha acabara de se tornar num vulcão em erupção - que há meses ameaçava eclodir.
Após as eleições a 23 de julho deste ano, que deram vitória mínima ao PP, o PSOE - Partido Socialista Operário Espanhol liderado por Pedro Sánchez - tem movido mundos e fundos para garantir acordos suficientes para ter maioria parlamentar e governar.
A direita espanhola – PP e Vox -, após resultados eleitorais estrondosos nas eleições regionais e municipais, não conseguiu garantir deputados suficientes nas legislativas antecipadas para ter maioria absoluta.
"O principal problema que a direita teve em julho foi que houve muitas pessoas com medo do Vox, da perspetiva de um governo que incluísse o Vox, como também houve em Portugal o medo do Chega", refere Pedro Cordeiro, editor da secção Internacional do jornal Expresso.
Na semana passada, as jogadas de xadrez de Sánchez chegaram ao limite para alguns eleitores espanhóis, ao ter feito um acordo de amnistia com os separatistas catalães. Com isto, a lava começou a jorrar pelas ruas de Madrid, Málaga, Granada, Valência.
A gota de água
A amnistia acabou por ser o gatilho do descontentamento que há muito que se tem verificado nos eleitores do PP – e no próprio partido - , liderado por Alberto Núñez Feijóo, e do Vox, chefiado por Santiago Abascal. Desde a vitória - sem maioria - que a oposição tem acusado o Partido Socialista espanhol de atacar a democracia ao procurar acordos com independentistas.
Com o apoio garantido do Sumar (partido de esquerda radical, como expõe o editor do Expresso) e acordos feitos com o Bloco Nacionalista Galego e o Partido Nacionalista Basco Sánchez percebeu que precisaria dos independentistas para segurar, com toda a força, o congresso de deputados espanhol.
Por isso, acordou com os líderes catalães da Esquerda Republicana da Catalunha (ERC) e com o Juntos pela Catalunha apoio parlamentar em troca de regresso do “exílio” - como os próprios chamam - e a anulação das acusações de sedição dos que organizaram um “golpe” para declarar a independência da Catalunha em 2017.
Carles Puigdemont - líder do Juntos pela Catalunha, partido separatista – e outros têm estado a viver em Bruxelas desde a tentativa de independência.
O saco cheio
A última gota de água encheu o saco e transbordou. Este acordo da amnistia fez com que vários protestos brotassem pelo país inteiro, com uma mobilização considerável em Madrid.
"Os protestos são esmagadoramente por causa da amnistia aos catalães, não é por causa da instabilidade. Esta amnistia será perdoar tudo o que os catalães independentistas fizeram nos últimos 11 anos – a amnistia aplica-se de 2012 a 2023 – mas não é sequer um perdão, uma amnistia apaga esses crimes, como se não tivesse acontecido nada, como se se passasse uma esponja pela História, o que é raro", explica o jornalista de Internacional do Expresso.
As tensões aumentaram e a violência também, algo que "não é comum", segundo Pedro Cordeiro, no país vizinho.
"Nos últimos anos não temos visto manifestações deste género. Há pessoas que sentem que isto é uma traição a Espanha. O separatismo é muito traumático em Espanha", diz.
Pedro Cordeiro relembra que no país basco o separatismo chegou a ser terrorismo, com várias pessoas assassinadas. Porém, no caso catalão, nunca houve violência, mas foram 11 anos seguidos de tentativa de independência, até à sua declaração “grave”, segundo o editor.
"Há um ano ou dois, Sánchez fez com que os presos envolvidos neste assunto fossem soltos, sendo considerado um indulto, perdão, mas é diferente dizer que foi tudo apagado. Ou seja, podem todos voltar e não lhes acontece nada", expõe.
Daí, os espanhóis encheram as ruas contra esta decisão.
A direita vira... ainda mais à direita
A situação, que se tem agravado desde os resultados eleitorais e a falha da direita (e extrema-direita) conseguirem maioria, tem feito com que as tensões escalassem.
Os manifestantes pedem prisão para Puidgemont e, agora, também a Sánchez, temendo mais um mandato de quatro anos liderado pelos socialistas com a esquerda.
O líder do Vox, partido de extrema-direita, disse na quinta-feira que o acordo de amnistia era um golpe do PSOE e Juntos pela Catalunha, sendo "uma ameaça à união nacional e a lei, sendo o início do fim da democracia e da ilegitimidade das instituições".
O PP prevê manifestações iguais à deste fim de semana todos os fins de semana até às eleições europeias, marcadas para junho de 2024.
A "estabilidade" momentânea
Esta quarta-feira está marcado o debate de investidura e quinta-feira será a votação para aprovação de Sánchez como primeiro-ministro.
Ao contrário do que acontece em Portugal, como explica Pedro Cordeiro, Espanha não tem um Presidente da República para nomear um primeiro-ministro e, por isso, é necessário o congresso – constituído por 350 deputados – aprovar o candidato através de, pelo menos, 176 votos favoráveis.
E será com a maioria parlamentar que agora tem, após os acordos com os galegos, os bascos e os catalães, que viabiliza a investidura e se tornará chefe do Governo, do qual Sumar fará parte.
Porém, tal como observa o editor do Expresso, esta confirmação enquanto primeiro-ministro não garante estabilidade para quatro anos de legislatura.
Exemplo disso, relembra Pedro Cordeiro, foi o que aconteceu a Sánchez em 2018 que, “quando foi primeiro-ministro pela primeira vez no final do seu primeiro ano não conseguiu aprovar o orçamento, caiu o governo e houve eleições antecipadas”.
Bruxelas is calling
Mas o assunto não fica por aqui. A direita – PP e Vox - ainda vai tentar que esta onda negocial de Sánchez não se prolongue e levará o assunto ao Parlamento Europeu, tendo em conta que configuram as ações do PSOE como ilegais, no que diz respeito à atribuição de amnistia aos independentistas catalães.
"A direita vai fazer de tudo para bloquear. Por um lado, vai mandar para o Parlamento Europeu, a União Europeia não vê com bons olhos esta regiões que se querem separar de país, mandam para mostrar que Sánchez está a dar uma má imagem do país lá fora", explica o jornalista.
E os "trunfos" não se esgotam aqui. O PP ainda tem possibilidade de travar a aprovação da lei da amnistia – mesmo após Sánchez já ser primeiro-ministro – para azedar as relações do PSOE com os catalães.
Como? Através do Senado – com 259 senadores -, um dos braços do Parlamento espanhol, para além do congresso dos deputados.
O Senado é controlado por uma maioria da direita, nomeadamente do PP e, apesar de não aprovar as leis – isso cabe ao congresso de deputados fazer - poderá colocar entraves ou bloquear.
Por último, tentará sempre recorrer à Justiça que, como observa Pedro Cordeiro, é tendencialmente conservadora.
As incertezas do futuro
A maioria que Pedro Sánchez terá para ser primeiro-ministro é simbólica. Apesar de conquistar o cargo, permanece a dúvida se conquista a estabilidade necessária para os próximos quatro anos.
"O que suspeito é que, cada vez que tiver que fazer um orçamento, vai ter os catalães e os bascos a querer mais coisas de Sánchez, de resto é preciso ver o que acontece com os protestos nas ruas, as coisas podem se tornar violentas", prevê o editor de Internacional.
As jogadas de xadrez do passado
Para aqui chegar, Pedro Sánchez escolheu "bem" - a seu proveito – o período em que convocou eleições antecipadas. Sob o argumento de pouca autoridade ou credibilidade para governar pelos resultados desastrosos das eleições municipais em maio, o PSOE quis pôr o PP à prova antes de estar preparado – e antes dos eleitores se terem desgastado na totalidade dos socialistas espanhóis.
"A antecipação das eleições) salvou-o. Por um lado, tirou algum tempo de desgaste ao governo e, por outro lado, na sequência das eleições regionais e municipais, houve acordos entre o PP e o Vox para governar regiões", explica o editor do Expresso.
Tendo em conta os acordos sucessivos entre direita e extrema-direita, Pedro Cordeiro considera que os eleitores espanhóis "estiveram sempre a ouvir sobre coligações entre PP e Vox, isso foi lembrando o eleitorado que uma vitória do PP significaria uma governação com o Vox, sendo algo que muitos espanhóis têm medo".
Espanha sairá, então, esta semana, de um governo em gestão que durou quatro meses e colocou o país em pausa.
Portugal entrará agora nesse período de gestão, com eleições antecipadas marcadas.
A Península Ibérica é feita de pausas, acordos e antecipações.