As grandes revoluções sociais falhadas da história da humanidade tiveram em comum um princípio errado: a ideia de que é possível “reinventar” a natureza humana.
A discussão sobre a natureza humana tem sido um tema central na filosofia, na sociologia, na biologia, e em todas as ciências humanas ao longo dos séculos, épocas e tradições. Esta discussão aborda múltiplos aspetos, que na sua génese visam compreender quais os fatores biológicos, sociais e culturais que determinam os comportamentos humanos.
Tenha ou não o ser humano a capacidade de fazer escolhas livres, sem que as suas ações sejam determinadas por fatores fora do seu controlo, como a biologia e o ambiente, existem funções consideradas ancestrais e intrínsecas do instinto, como sejam a busca por comida para sobrevivência, abrigo e vestuário para proteção, e o sexo para a reprodução.
A socialização entre indivíduos é apontada como uma função acessória, pela necessidade de pertença a um grupo, de companheirismo e aceitação. Aliás, discute-se até que ponto os seres humanos são essencialmente individuais ou se a nossa natureza é coletiva, pela forma como equilibramos as necessidades individuais com as exigências da convivência e harmonia sociais.
A civilização humana foi erguida neste pressuposto de contenção do instinto, de certa forma opondo a natureza egoísta e brutal do ser humano, no seu estado natural sem governo, que Thomas Hobbes designou de "guerra de todos contra todos", com a ideia de que o ser humano é naturalmente bom, um nobre selvagem livre e em paz, segundo Jean-Jacques Rousseau, todavia corrompido pela sociedade promotora de desigualdade e conflito.
O ser humano enfrenta uma batalha constante entre o instinto, selvagem e ancestral, e o intelecto, capaz de apoiar modelos sociais alicerçados na cooperação e flexibilidade entre indivíduos. Esta “batalha” manifesta-se em diversos aspetos da vida quotidiana, na tomada de decisões, resposta a conflitos, competição por recursos, autocontrolo até na estruturação de sociedades complexas.
Este conflito irresolúvel poderá ter imprimido na natureza humana uma atitude competitiva, egoísta e agressiva. Ao perceber a causa e efeito das suas escolhas e ações individuais, contrárias aos interesses do grupo, os seres humanos tiveram de desenvolver mecanismos para retaliar contra as críticas, buscar apoios para as suas ações e evitar a condenação pelos seus atos.
As causas comuns que suportaram os grandes movimentos ideológicos e que moldaram o mundo moderno estão em declínio. O comunismo, o fascismo e o liberalismo influenciaram profundamente a sociedade oferecendo diferentes visões da ordem social. Segundo Yuval Noah Harari, estas tradições ideológicas estão a ser desafiadas por novas realidades sociais, tecnológicas e ambientais, e poderão dar lugar a novas forças, possivelmente não-biológicas, na tomada das decisões civilizacionais.
O individualismo, ainda que seja apontado como uma “não-ideologia”, é uma característica dominante da era atual. No entanto, por ter o indivíduo no núcleo central, não se está a revelar capaz de fazer frente a desafios globais como são as mudanças climáticas e a crescente influência da tecnologia na sociedade. As soluções para estes desafios exigem novas formas de cooperação e uma reconsideração de como os valores individuais e coletivos se entrelaçam.
Não há dúvida de que é necessário equilibrar os direitos dos indivíduos com os desafios coletivos que enfrentamos como espécie. Este equilíbrio seria possível através de uma nova causa comum para a humanidade, que não existe. A crise ideológica transformou-se numa crise identitária, e a sensação de mudança sem um objetivo claro e definido está a provocar uma ansiedade social sem precedente.
Por não existir uma visão coletiva do mundo, ou até visões rivais, os indivíduos estão a revelar a sua natureza egocêntrica, agressiva e alienada.
Os exemplos são visíveis todos os dias no palco neurótico das redes sociais. Como explica John Cleese, comediante e autor, estamos a atravessar uma época em que não há nuances, não há contexto, em que cada indivíduo acredita que apenas a sua ideia é boa, que apenas o seu sentimento é válido. Uma sociedade dividida por fundamentalismos identitários e intolerantes. Como todos acreditam que são melhores do que os outros, ninguém consegue ver os seus próprios defeitos.
Sem uma ideologia capaz de responder às exigências da transformação social, o discurso político preenche este espaço com discursos de ódio, demagogia e populismo. Estar contra ou a favor de direitos individuais avulsos e dispersos, de forma a agradar cada indivíduo e todos ao mesmo tempo, passa a ser uma espécie de “ideologia”, difícil de concretizar pela forma como as sociedades e as instituições estão estruturadas.
A solução não é simples. Não é possível reinventar a natureza humana. Entregar às atuais estruturas de poder o destino da humanidade pode ser, nesta conjuntura, um erro maior. Perante o individualismo egoísta, o aproveitamento político da instabilidade social, a dissociação da realidade das redes sociais, talvez seja importante chamar a atenção dos adultos à mesa para a frase do pediatra e autor francês Aldo Naouri quando disse que “uma criança bem-educada é uma criança que sabe que os outros existem".