Na primeira parte desta série de artigos disse que as redes sociais são um tubarão faminto que se alimenta da nossa atenção, numa sequência de estímulos orquestrada pelo todo-poderoso “algoritmo”. Em princípio, este algoritmo não tem um plano para destruir a humanidade, talvez queria apenas subjugá-la.
A plataforma de media “The China Project” revelou que o algoritmo das redes sociais na China, com um controlo rigoroso do estado, está “programado” para conteúdos educativos e patrióticos que inspiram as crianças a serem astronautas. Nos Estados Unidos, as mesmas redes sociais promovem atividades recreativas e de entretenimento, como por exemplo as “danças” virais. O objetivo poderá ser estimular intelectualmente as crianças chinesas em detrimento de outras culturas. Daqui a dez anos saberemos se esta estratégia surtiu efeito.
Como efeito da globalização, a humanidade está hoje culturalmente programada para a homogeneização de hábitos, valores e até ideologias. Esta uniformização é evidente na forma como as tendências se propagam. As redes sociais, pela baixa resistência dos utilizadores aos seus conteúdos, são um dos principais veículos dessa disseminação cultural, que se entrelaça subtilmente com filosofias de educação, culturas de trabalho e esquemas de realização pessoal.
Um dos exemplos debatidos tem sido a ideia, incutida às crianças e jovens, de que o importante é serem felizes. Não precisam de ser médicos ou engenheiros se não quiserem, “apenas” felizes.
É fácil perceber que esta pressão é uma sobrecarga avassaladora para um jovem no seu processo de transformação, com as frustrações naturais que dele decorrem. O crescimento emocional faz-se através de mecanismos de oposição entre o adolescente e o adulto. Esse processo seria mais fácil se o “obrigassem” a ser engenheiro. Afinal, quem é que não quer ser feliz?
As pessoas, de uma forma geral, estão cada vez mais desconectadas entre si e do mundo. As interações nas redes sociais ampliam a dissociação entre a expectativa e a realidade. Cada publicação é criteriosamente orquestrada para a perfeição.
Tiram-se centenas de fotografias para escolher uma. As melhores paisagens, as melhores refeições, as melhores roupas, as melhores experiências, os melhores sorrisos. Exibem-se vidas “editadas” que não existem. Realidades fabricadas que servem de referência aos outros, que as invejam por estarem próximas, mas que se lhes afiguram inalcançáveis.
Devíamos questionar quem é que interrompe um beijo para tirar uma fotografia, e ao fazê-lo o que está a querer dizer aos outros? Existe, contudo, uma contradição entre a simplicidade ao alcance de todos que estas partilhas sugerem e o esforço que implica a sua realização. Este padrão propaga na sociedade um sentimento de inadequação e ansiedade, distanciando o indivíduo da verdadeira essência da satisfação e da felicidade. Documentar o momento para mostrar aos outros passa a ser mais importante do que experienciá-lo.
Neste contexto surgem alguns influenciadores e “coachs” que são uma espécie de “vendedores de picaretas” da felicidade.
Na Califórnia, em 1848, não ficaram ricos os milhares de pessoas que se aventuraram na corrida ao ouro, mas sim alguns empresários como Levi Strauss e Samuel Brannan que lhes vendiam roupas e ferramentas. No desespero de não encontrarem ouro, muitos garimpeiros tentaram, sem êxito, converter-se eles próprios em vendedores de picaretas. Os conteúdos destes gurus, por vezes gerados por Inteligência Artificial, estão associados a modelos de negócios de seguidores e conversões e não à eficácia das soluções que oferecem.
Existem aspetos positivos na forma como as redes sociais facilitam o acesso a estes conteúdos. Podem oferecer uma rede de suporte que proporciona um sentido de pertença. Podem facilitar mecanismos de autoexpressão e exploração da identidade, especialmente para pessoas ou grupos marginalizados. Podem ajudar a solidificar relações, promover estilos de vida saudáveis e inspirar mudanças. Podem também educar e sensibilizar para causas importantes.
Como os artistas que se expressam através das suas obras, alguns influenciadores digitais usam as redes sociais como ferramenta criativa e de relação com o público. Partilham as suas ideias, inspiram e instigam o pensamento crítico. As redes sociais oferecem uma plataforma acessível e imediata para que se expressem e construam comunidades. No entanto, é importante distinguir estes criadores daqueles que produzem conteúdo sem valor, apenas ruído que não contribui para o crescimento cultural, emocional ou intelectual do público.
Cada um deve impor os seus limites na fronteira entre a vida pública e a vida privada. Num cenário ideal, teríamos o discernimento para distinguir a fantasia da realidade. A família perfeita que esconde tensões e desafios do dia a dia. O empreendedor de sucesso que exibe uma vida de luxo sem revelar dificuldades, fracassos e trabalho árduo. A Influenciadora de fitness que publica fotos do seu corpo esculpido, sugerindo que os exercícios e dietas são fáceis de seguir. O amigo das viagens exóticas que não revela o esforço financeiro desse estilo de vida.
De vez em quando surgem tendências que visam desmascarar essa ilusão. #NoMakeup para promover a aceitação da beleza natural. #BodyPositivity para desafiar os padrões de beleza irrealistas. #RealLifeVsInstagram comparando imagens editadas e a realidade. No entanto, estes movimentos são asfixiados pela necessidade humana de substituir a realidade por mundos idealizados que proporcionam uma sensação temporária de alívio e prazer.
As redes sociais, com todas as suas contradições, oferecem um escape e uma rede de suporte, mas estimulam expectativas irreais e ansiedades modernas. Numa sociedade onde a felicidade se tornou um produto, devemos traçar limites entre a vida pública e a privada, e ter a capacidade de distinguir a realidade da perfeição artificial.