Não sou apologista da promoção pelo drama ou da notoriedade via desgraça. Queria que esta ideia ficasse muito clara.
Sei que, a cada segundo que passa, há pessoas boas que partem de forma inesperada e cruel. O desabafo, mais emocional que racional, reconheço, pretende levantar outro tipo de reflexão.
Este meu familiar, tal como tantos outros, emigrou jovem, rumo ao que achava ser uma vida melhor. Convém contextualizar: anos 50, 60, zona rural, baixa escolaridade e muitas dificuldades para quem descendia de gente humilde e menos afortunada.
O destino foi Caracas, capital de um país então conhecido como a "Venezuela Saudita", tal a sua riqueza em petróleo e as oportunidades que, dizia-se, permitiam uma vida tranquila e segura para todos. A cidade tinha prédios altos e modernos e infraestruturas de topo. Foi esse o cenário que ele encontrou. E foi aí que criou família, viveu e trabalhou até partir.
As coisas mudaram totalmente quando Chávez chegou ao poder em 1999. O regime condicionou liberdades e retirou direitos. Toda a gente, menos quem é indecente, sabe disso.
Aos poucos, um dos países mais ricos da América do Sul, passou a ser aquilo que é hoje: o Inferno na Terra, com uma crise real sem fim à vista.
A hiperinflação, a pobreza de 90% da população e a escassez de alimentos são apenas o rosto visível do caos. Há outros, como o aumento galopante da criminalidade (há homicídios e sequestros constantes), a perseguição política, o ataque cerrado à liberdade de expressão, a corrupção descontrolada, etc, etc. Só para que percebam, o salário mínimo na Venezuela é hoje inferior 4 dólares/mês. Dá para comprar meio frango.
Infelizmente para ele, o declínio no sistema nacional de saúde foi outro dos danos colaterais desta forma de governar. Imaginem este cenário: a maioria dos hospitais com más condições de higiene e escassez brutal de médicos, enfermeiros, técnicos, auxiliares e afins (atenção, não há comparação com o que se passa por cá).
Faltam todo o tipo de recursos humanos, mas também operacionais, logísticos e tecnológicos. As unidades hospitalares quase não têm meios de diagnóstico (aparelhos para realizar ecografias, RX, TAC, RM), não há medicamentos, não há camas suficientes para todos e às vezes nem há água ou electricidade. Raramente há rede móvel ou acesso à internet. Quem consegue "cama" para o seu familiar, tem que trazer colchões, lençóis e cobertores de casa. Ou isso ou senta-o numa cadeira de plástico, daquelas que se vê no "Café do Ti Barnabé". E quem quiser monitorização mais próxima do seu ente querido, que pague 60 ou 70 dólares por dia a um "enfermeiro amigo". Medicação prescrita, soro, seringas? Só se compradas na farmácia, porque nos hospitais não há.
Não sei se o destino seria diferente caso a assistência médica fosse a esperada. Talvez sim, talvez não.
Mas é impossível não questionar "E se?" quando se sabe a forma degradante como tudo aconteceu.
Horas e horas de espera, ausência de tratamentos, de avaliação médica, de explicações. Negligência total, até no recobro a uma cirurgia ao cérebro. Terceiro mundo, sem tirar nem pôr.
O meu tio faleceu sem o respeito que esse país lhe devia. Não sei se a revolta maior é por não digerir bem este desfecho ou se por saber que, por cá, neste nosso país tão diferente, há quem defenda os Maduros deste mundo como heróis, mesmo sabendo o que fazem aos seus.
É difícil de entender. É impossível de aceitar.