Rui Correia

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A escola não é um educatório

Há falta de professores nas escolas, mas há ainda mais falta de pais. São aos milhares os pais que desistiram, exaustos. "Já fiz tudo. Já não sei o que fazer com ela." Como se a escola fosse o lugar para resolver esse problema.

A escola não é um educatório
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Entrou pela portaria da escola adentro sem fazer caso de ninguém e irrompeu aos gritos pelos corredores. Procurava uma professora para lhe "partir a boca toda".

Na direção da escola tocou o telefone a alertar para o que se estava a passar. Quando confrontada, a mulher acalmou-se e aceitou sentar-se num gabinete onde foi até possível conversar calmamente sobre o que se passava.

O que a fizera perder a compostura foi uma história sem nexo que o filho lhe contara e que era notoriamente inventada. Um clássico. Quem passou por direções escolares sabe que mais tarde ou mais cedo vai ter de lidar com situações destas e nem sempre com desfechos bem-sucedidos. Mas, quando tudo se apazigua, nunca se consegue deixar de pensar na qualidade e quantidade de pais e mães que acham que bater em professores é algo que pode, em algumas circunstâncias, ser admissível.

Como na têvê

Escolas há onde se vive em permanente estado de alarme. A qualquer momento um exaltadinho pode invadir a escola. Vamos dizendo que são casos isolados. Na verdade, só lhes chamamos casos isolados quando a galheta assenta em cara alheia. Para mais, os jornais rejubilam com estas coisas e acrescentam pontos a quem lhes conte um conto. Quanto mais sumarenta a escaramuça, mais próximo da capa ficamos. É obsceno. Dá vontade de exigir que se faça nas escolas aquilo que se faz no futebol. No futebol quando um palerma invade o campo é abafado de duas formas: primeiro caem-lhe seis mamíferos em cima até que o energúmeno se transforme em alcatifa. Em segundo, jornalistas e realizadores de televisão respeitam instruções expressas para impedir que se dê visibilidade a estes idiotas.

Conclui-se que ameaçar um futebolista é intolerável e deve censurar-se para evitar imitações futuras; bater num professor parece ser algo inteiramente diferente e aceitável.

Que ninguém duvide, para que fique bem claro, que são muitos os professores que já, um dia ou outro, pensaram em desancar um pai, por esta ou aquela razão. Só não o fazem porque é estúpido. Ninguém é perfeito. São as despesas de ser humano.

Nem se duvide que há professores que cometem disparates de tal envergadura que são bem difíceis de conceber ou de justificar, seja por quem for. Perguntem aos desventurados dos diretores de turma, esses instantâneos relações-públicas escolares, que todos os dias fazem a formidável mediação entre a casa e a escola. São aos milhares os casos em que os diretores de turma acumulam vergonha alheia e amansam iras grandes em gabinetes pequenos.

Evitar "chatices"

Se o pugilato entre pais e professores representa, estatisticamente, uma raridade, o bullying parental sobre as escolas cresce a olhos vistos, como uma espécie invasora. Basta escutar algumas conversas em reuniões de professores, especialmente no ensino secundário. Cada vez vemos mais professores que temem tudo quanto porventura os pais possam questionar. Medo do que os pais possam dizer ou fazer aos professores. Ninguém o reconhecerá, mas o medo vive. Há classificações a serem preventivamente alteradas em função destes temores, e "para evitar chatices". E são fundados estes receios.

Por "chatices" entenda-se a dissecação persecutória de todas as decisões didáticas e pedagógicas de um professor, a convocação repetida de reuniões, humilhações à porta fechada, a exposição, a sevícia moral, votações de notas e a sempiterna redação de longos relatórios a fundamentar decisões "subjetivas". Entre isto e mudar uma nota, mude-se a nota, claro está. E isto é a perversão integral da escola.

Toda a prática escolar deve ser objeto de escrutínio e de transparência. As associações de pais e seus representantes são personagens fundamentais para corrigir percursos. Vamos mais longe: este é um país onde os encarregados de educação são historicamente responsáveis por terem detido e derrubado direções escolares que, por todo o país, assumiram inadmissíveis autocratismos napoleónicos de governança.

Devemos saúde institucional a muitas destas pessoas que fazem das associações de pais plataformas de exigência e serenidade. A sua presença ativa nos órgãos deliberativos das escolas é inegociável. Uma escola apenas vive pior sem eles. Tão simples como isso.

O trabalho de casa

Todavia, há mais coisas a acontecer no reino dos papás e das mamãs. Condicionados para a alta competição, nada os demove da sua sanha por aquela nota, ou aquela aula, que deve ser combatida e desfigurada, até às últimas consequências. Assiste-se hoje em dia a verdadeiras guerras civis entre professores e direções escolares que tudo aceitam apenas para evitar longos processos de revisão de notas ou de pedagogias. Destas pelejas resultam amuos de anos, maus olhados e perfídias que demoram a curar ou nem chegam a passar. É o absoluto da frivolidade.

Há dias, uma mãe fez chegar a um Conselho de turma de avaliação uma mensagem rogando aos professores que baixassem todas as notas da sua filha que, dizia ela, perdeu a noção da responsabilidade de estudar. O resultado não foi o esperado. Todos os professores contestaram as conclusões daquela mãe, sublinhando que a aluna tem até feito progressos assinaláveis e que a encarregada de educação nada tinha que interpelar os professores no seu ofício. Virou-se o feitiço contra o feiticeiro.

"Tomáramos nós que fizessem o seu trabalho em casa, quanto mais virem dizer-nos como fazermos o nosso", era a convicção consensual. Para cumular a coisa, na mesma reunião outra encarregada de educação questionava por escrito a forma como a professora de português dava as aulas, dizendo que devia dar aulas como a professora de francês dava. Ficava patente que estas mães bolinavam entre o excesso de zelo e a irrelevância. Nada contribuía para o que quer que fosse, a não ser para uma entediante perda de tempo.

A fechadura da sensatez

Dizia há dias um amigo que, no Estado da Florida, nos EUA, os diretores escolares (principals) estão a demitir-se às dezenas por causa de uma legislação recente que permite aos pais interferirem explicitamente nos currículos das escolas. E é para aqui que nos vamos dirigindo. Por falta de coragem. Por aceitarmos estas invasões de campo. Estes fratricídios em que pais e professores se confrontam e detestam. Combates entre pessoas sempre carregadinhas de razão. No meio, purgatórios, estão os alunos, bolas de pingue-pongue nas mãos de inimigos que, centímetro a centímetro, vão fechando a porta da sensatez e do diálogo produtivo.

Assédio moral sobre a escola

A escola parece ter perdido a sua função como instrumento de divulgação e reflexão cultural e científica. Parece resignar-se crescentemente a uma função genericamente "educadora". Ou seja, os professores são hoje uma espécie de substitutos de pais ausentes. É por isso que os professores são sempre vistos como uma profissão em que se pode confiar. Porque nenhum pai aceitaria deixar os seus filhos a alguém em quem não confie. Mas basta que surja um qualquer equívoco e é certo e sabido que lá virá a gritaria e a mão levantada.

Quando a escola é transformada numa instituição de acolhimento de crianças que ali vão para serem "educadas", tudo se perde no papel principal que deve assumir. A complacência que se vive perante este assédio moral e físico sobre as escolas e os professores tem de ser combatido. É uma questão de decência e de higiene social que o quadro penal para estes incidentes seja particularmente severo e observado.

O educatório

Há falta de professores nas escolas, mas há ainda mais falta de pais. São aos milhares os pais que desistiram, exaustos. "Já fiz tudo. Já não sei o que fazer com ela." Como se a escola fosse o lugar para resolver esse problema. Não é. A escola não é um sanatório educacional. O papel da escola não é, sequer, o de "educar" ninguém. O papel da escola é o de abrir janelas e fazer com que os miúdos levantem voo, poderosamente. E se elevem nas asas daquilo que sabem perceber e construir. Esta perceção generalista da escola, onde absolutamente tudo tem de caber e nada se aprofunda, destrói os alicerces da sua intervenção. A escola nunca foi o lugar onde se "educam" cidadãos. Esse lugar é em casa e na rua. Ou devia ser. E, quando não for, não será certamente por responsabilidade da escola. A serventia da escola é a de criar multidões de estudantes. De pessoas que percebem a importância egoísta e altruísta de ser estudioso, para além de educado. Serve para cimentar o costume da reflexão e tomar balanço para os mergulhos da criação.

Tempos de extorsão parental

Todo o professor é um educador, mas quando se confunde um professor com um educador, algo se perde na tradução. Não são condições idênticas, há diferenças notáveis. Mesmo quando se cruzam periodicamente, e cruzam-se frequentemente, não são, ainda assim, indistintas. Pais e professores não são, não podem, nem devem ser a mesma coisa. É desta indistinção que nascem tantos equívocos. É por isso que entram pela escola adentro estes murros e gritos espúrios de pais que não aceitam que este ou aquele professor diga isto ou faça aquilo, ensine isto ou aquilo, dê esta ou aquela nota, que aquele livro "exponha as nossas crianças" a isto ou aquilo, que este despacho ministerial admita isto ou aquilo.

Pais que falam de agendas escondidas, como se as suas não saltassem à vista. É uma forma de usura cultural fundada no medo. É não perceber nada do que a escola é. É indispensável confiar na inteligência de pais e de professores e que nem uns nem outros deixem de expor corajosamente quaisquer formas de extorsão parental. Pais e professores são antigos aliados, e é assim que devem permanecer, adversários da estupidez e não uns dos outros.