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Lei das ordens leva a demissão contra "tentativa de liquidação" da classe médica

Coordenador da Reforma da Saúde Pública, Mário Jorge Neves, deixa cargo e faz duras críticas à legislação e ao novo estatuto da Ordem dos Médicos, que classifica de "ofensiva liquidacionista".

Lei das ordens leva a demissão contra "tentativa de liquidação" da classe médica
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O coordenador da Comissão para a Reforma da Saúde Pública demitiu-se por discordar da nova lei-quadro das ordens profissionais e do novo estatuto da Ordem dos Médicos, que classifica de "ofensiva liquidacionista" do Governo contra os médicos.

Mário Jorge Neves considera que a Ordem dos Médicos deveria tomar "uma posição enérgica em defesa da sua existência e da própria classe". Caso contrário, "pode entregar a chave, que não está lá a fazer nada", acrescenta.

Numa carta enviada na terça-feira à noite à secretária de Estado da Promoção da Saúde, Mário Jorge Neves explica os motivos da sua demissão, sublinhando o desacordo com a chamada nova lei das ordens e com a proposta de texto para os novos estatutos da Ordem dos Médicos, elaborada pelo Governo.

"Estas medidas governamentais constituem uma violenta e escandalosa tentativa de liquidação de elementares competências legais da Ordem dos Médicos e de ingerência política e governativa na autonomia e independência técnico-científica da profissão médica", escreve o médico, especialista em saúde pública.

Em declarações ainda antes de receber a proposta de estatutos, o bastonário da Ordem dos Médicos manifestou-se preocupado com a proposta do Governo, afirmando que "pode estar em causa" a missão e o papel da classe, admitindo eventuais medidas de luta.

Na carta, Mário Jorge Neves diz que, na nova legislação, "as disposições da livre concorrência sobrepõem-se a tudo, esmagando as garantias da qualidade do exercício da profissão médica e os níveis de segurança dos atos próprios dos médicos". Em nome dessa livre concorrência - acrescenta - "até chega ao ponto de possibilitar o exercício da profissão médica sem necessidade de inscrição na Ordem dos Médicos".

"Estas medidas passam a ficar registadas como o exemplo dramático da capitulação político-ideológica do Partido Socialista ao neoliberalismo mais extremista de inspiração thatcheriana", insiste.

Médicos internos passam a estagiários para criar “extrema precariedade laboral”

Como exemplo das preocupações levantadas pelos novos estatutos, Mário Jorge Neves aponta a criação de "estágios" e o facto de os médicos, no início da sua atividade profissional, deixarem de ser considerados médicos internos e passarem a ser "estagiários".

O contrato de trabalho passa a ser um "contrato de estágio" e o salário mensal passa a ser "bolsa de estágio mensal", uma situação que o especialista considera mais do que suficiente para se poder concluir que o Governo "está a escancarar as portas para, em seguida, poder ser liquidada a Carreira Médica e ser estabelecida uma extrema precariedade laboral a nível dos médicos mais jovens".

"A minha intervenção política e cívica processou-se sempre sem 'amarras' e tendo como pedras angulares a defesa e dinamização do SNS como pilar humanista e solidário de uma sociedade democrática, bem como na defesa da Carreira Médica como mecanismo inquestionável de garantia da qualidade do exercício da profissão médica", escreve.

Quanto à nova lei das ordens, sublinha: "As disposições visam instaurar o clima do comissariado político cavaquista inaugurado em 1988 com as nomeações político-partidárias para os vários níveis de gestão dos serviços públicos de saúde e que tem sido um decisivo fator de erosão e debilitamento do SNS".

"Existir um chamado provedor de serviços não médicos, estabelecer a criação de um órgão de supervisão para regular o exercício da profissão médica, presidido por um cidadão não médico e constituído maioritariamente por não médicos, que vai ao extremo de intervir na definição de regras dos estágios profissionais e até das próprias especialidades e, ainda, estabelecer órgãos disciplinares integrados por não médicos, constituem um somatório monstruoso destas medidas governamentais", acrescenta.