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Os números preocupantes do consumo de álcool: “Aumentar o preço talvez fosse a solução”

Em 2022 registou-se o valor mais alto dos últimos 10 anos de pessoas dependentes do álcool em tratamento - os números quase quadruplicaram numa década. A SIC Notícias foi perceber junto do psiquiatra e coordenador da Unidade de Desabituação do Centro das Taipas, Miguel Vasconcelos, o que representam estes dados na realidade portuguesa.

Os números preocupantes do consumo de álcool: “Aumentar o preço talvez fosse a solução”
Alena Frolova

Foram divulgados, na passada terça-feira, os dados relativos ao consumo de álcool em Portugal no “Relatório Anual 2022”, desenvolvido pelo Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD). A SIC Notícias foi perceber junto do psiquiatra e coordenador da Unidade de Desabituação do Centro das Taipas, Miguel Vasconcelos, o que representam estes dados na realidade portuguesa.

Segundo o relatório do SICAD, em Portugal “observamos algumas evoluções positivas em indicadores na área do álcool, mas são mais as negativas, quer se trate de evoluções recentes ou com agravamento continuado”.

“Apesar do aumento da abstinência na população geral (15-74 anos), entre 2017 e 2022 não houve melhorias na maioria dos indicadores. Diminuiu a idade média de início dos consumos, aumentou o consumo recente e atual de álcool, a embriaguez severa, os consumos de risco elevado e a dependência (esta tem vindo a aumentar desde 2012 e quase quadruplicou em dez anos)”, lê-se no relatório do SICAD.

O Relatório Anual do SICAD demonstra também que, ao longo de 2022, mais de 4.800 pessoas iniciaram tratamento por causa do álcool, bem como se realizaram 4.500 internamentos hospitalares, em doentes crónicos.

Consumo nos jovens e o fenómeno binge

“Os dados mostram-nos sobretudo que os jovens estão a começar a beber mais cedo, sobretudo as raparigas”, afirma Miguel Vasconcelos.

O psiquiatra e coordenador da Unidade de Desabituação conta que "um dos comportamentos mais frequentes atualmente é o binge", que se traduz no consumo de várias bebidas alcoólicas num curto espaço de tempo, e que este ano, em conjunto com a embriaguez, atinge os valores mais altos desde 2015.

Os dados demonstram ainda que nas populações em idade escolar, para além da adoção de comportamentos como o binge, “também as prevalências da experiência de problemas relacionados com o consumo de álcool foram muito superiores nos últimos dois anos”, quando comparadas com os anos pré-pandemia.

Aumentos transversais a todas as idades

O presente relatório permite obter uma visão concreta e abrangente do panorama nacional, na medida em que junta a informação de vários parceiros enquanto fonte, bem como os resultados de vários estudos nacionais.

“Os agravamentos foram transversais a ambos os sexos e à maioria dos grupos etários, embora mais expressivos nos homens e em algumas idades, como o consumo de risco elevado nos 15-24 anos e 25-34 anos e a dependência nos 35-44 anos e 45-54 anos”, lê-se também no relatório do SICAD.

Mortalidade no valor mais alto da última década

Também a mortalidade relacionada com o consumo atinge os valores mais altos da última década.

“Assistimos ainda a evoluções negativas ao nível da mortalidade, com os óbitos por doenças atribuíveis ao álcool em 2020 e 2021 a serem os mais altos dos últimos dez anos e, as vítimas mortais de acidentes de viação sob a influência do álcool a aumentarem em 2021 e 2022, atingindo já os níveis pré-pandémicos”.

Que soluções para este flagelo?

Questionado sobre quais poderão ser as causas para estas evoluções negativas em quase todos os parâmetros, o médico aponta algumas possibilidades.

“Não temos respostas concretas para os motivos que poderão estar a levar a estes aumentos, mas o período de pós-pandemia parece que trouxe uma necessidade de fazer tudo o que não foi possível fazer, por isso cometem-se excessos. Outras causas, como a diversificação dos meios de divertimento e festas, podem estar a fazer aumentar estes números”, detalha.

O relatório salienta ainda uma preocupação “relacionada com a disponibilidade e a acessibilidade a bebidas alcoólicas por parte de menores”, frisando que existe “uma importante franja de menores a continuar a adquirir bebidas alcoólicas em vários tipos de pontos de venda apesar de proibido por lei, sem que se observe um reforço do investimento na fiscalização”.

De acordo com o médico, “quase sempre o início das adições acontece devido à experimentação”.

“Para haver uma adição é necessário que existam três fatores: a pessoa, a substância e o contexto, podendo este último ter variadas origens. Se fosse limitado o acesso à substância, já se estava a atuar a montante, que é a fase essencial de intervenção.

Acrescentando ainda: “Aumentar o preço do álcool talvez seria uma solução”. Uma opinião partilhada pela própria Organização Mundial de Saúde (OMS), que em dezembro passado apelou aos governos mundiais que aumentem as taxas sobre este produto, que anualmente provoca 2,6 milhões de mortes.

A capacidade de resposta “está a perder-se”

Miguel Vasconcelos, que trabalha no Centro de Taipas há mais de 30 anos, defende que “a capacidade de resposta está-se a perder”, em grande medida devido à falta de recursos humanos.

“Quando o Centro das Taipas abriu em 1987, éramos 157 pessoas, entre os quais 13 psiquiatras. Hoje em dia somos apenas 50 elementos, e só quatro psiquiatras. Estamos em risco de perder parte do que já fizemos”, alerta o especialista em Psiquiatria.

Na visão de Miguel Vasconcelos, nas estruturas que combatem esta adição “há agilidade e capacidade” de resposta, realidade que se deve em grande medida ao facto de serem coordenadas entre si e, sobretudo, de haver apenas um organismo central, “que é muito importante” na gestão de toda a estratégia nacional.

Ainda assim, o médico reforça a necessidade de ser feito “um forte investimento ao nível dos recursos humanos”, de modo a conseguir acompanhar o compromisso de prevenção e acompanhamento dos casos de alcoolismo.

Para além do alcoolismo, também outras adições são acompanhadas neste centro, através do programa de metadona, equipas dedicadas ao relacionamento maternoinfantil e grupos de combate ao tabagismo, jogo e chemsex (consumo de drogas em contexto sexual).

“Temos vários profissionais a reformarem-se, porque, obviamente, estão em idade para tal, mas não estão a ser substituídos, não está a ser feita a colocação de novos membros. É necessário inverter a sangria das contratações”, apela o psiquiatra.