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Droga à vista de todos: "Não podemos pensar que o grande desinvestimento não ia ter consequências"

As associações que prestam apoio na zona da avenida de Ceuta, em Lisboa reconhecem que há um aumento de pessoas na rua, a consumir drogas, mas apontam o exagero quando tentam comparar esta realidade com aquela que foi vivida nos anos 90 no Casal Ventoso.

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O consumo de droga faz-se agora à vista de todos, em plena luz do dia. Quem passa pela avenida de Ceuta, em Lisboa, vê grupos à beira da estrada. A maior parte homens. Sentados no chão, em cartões ou lonas, rodeados de lixo. Percebe-se que entre a vegetação há algumas tendas.

Naquela zona de Lisboa, ali ao lado do local onde um dia esteve instalado aquele que foi considerado o maior supermercado de droga a céu aberto da Europa, vêem-se pessoas a empunhar seringas, a injetarem-se. A consumirem droga fumada. Era este o cenário testemunhado pela SIC às 15:00 da última terça-feira, dia de Carnaval, e de muitos outros dias.

As associações que acompanham e prestam apoio nesta zona da capital reconhecem que há um aumento de pessoas na rua, a consumir e a precisar cada vez mais de ajuda, mas apontam o exagero quando alguns tentam comparar esta realidade com aquela que foi vivida nos anos 90 no Casal Ventoso.

“Acho que é um exagero porque o Casal Ventoso era uma situação muito pior. Não havia as equipas que existem hoje, como as da Crescer. Encontrávamos pessoas que desenvolviam gangrena, perdiam braços e pernas, tinham feridas com larvas, morriam ali, na rua. Eram milhares de pessoas que frequentavam o Casal Ventoso”, recorda Américo Nave, diretor-executivo da associação Crescer, que tem cinco equipas de rua a prestar apoio na Grande Lisboa, formadas por pessoal especializado, desde psicólogos a assistentes sociais, passando pelos médicos e enfermeiros.

Ainda assim, alerta o responsável, “não podemos pensar que o grande desinvestimento da última década não ia ter consequências”.

A associação notou, de facto “um aumento do consumo de substâncias psicoativas nas ruas, que aconteceu ao longo dos anos e não nos últimos meses”, além de que não é exclusivo daquela zona da cidade, “mas que se vê por toda a Lisboa”.

Há também um perfil: “a maioria são homens, na faixa dos 40 anos, cujo consumo principal é fumado, de cocaína ou crack”. A Crescer nota também “um aumento de pessoas migrantes a consumir nas ruas”.

Carta aberta à procura de soluções

Ainda que se verifiquem problemas noutros pontos da capital, o aumento do consumo na zona que rodeia a avenida de Ceuta motivou a divulgação de uma carta aberta, subscrita pelas juntas de freguesia de Alcântara e de Campo de Ourique, de inúmeras associações que prestam apoio naquela área e ainda instituições que ali se encontram, como a Escola Superior de Saúde da Cruz Vermelha Portuguesa.

Além de uma aposta no presente, com um reforço das equipas de rua - que se dedicam ao tratamento, mas também a minimizar os riscos dos consumidores de droga através de programas como o da troca de seringas usadas -, os subscritores apelam à "definição de uma estratégia integrada de longo prazo, que envolva todas as entidades e organismos do sector público com intervenção nas diversas áreas de atuação, que vise a melhoria da qualidade de vida de quem reside, visita, estuda ou trabalha no território abrangido pela Av. de Ceuta e Vale de Alcântara”.

Devolver a dignidade reduz consumos

A experiência de associações como a Crescer, que entre os seus projetos tem em funcionamento "cinco restaurantes onde só trabalham pessoas que vieram da situação sem-abrigo, algumas com consumos associados", leva a que defendam um modelo mais abrangente no combate às dependências.

“Temos de devolver a dignidade a estas pessoas, que necessitam dela como qualquer cidadão. Temos de nos focar nas pessoas como um todo. Quando melhoramos a situação destas pessoas através do acesso à habitação, pelo menos é essa a nossa experiência, o seu controlo sobre o consumo de substâncias também melhora. Consomem menos”, afirma Américo Nave, lembrando que “não é por consumirem que perdem os seus direitos”.

Regularizar o uso de todas as drogas também permitiria, defende o diretor-executivo da Crescer, direcionar “o investimento da repressão e do combate ao consumo na melhoria das condições de vida e no acesso à saúde” de quem vive uma dependência.

“A maior parte da sociedade ainda olha para estas pessoas com grande estigma porque fazem uso de substâncias psicoativas, que muitas vezes são vítimas de problemas que se atravessaram no seu desenvolvimento e recorreram a isso para o suportar. Há pessoas que recorrem ao jogo, ao sexo, há pessoas que têm problemas de saúde mental”, conclui Américo Nave.