Ninguém celebra esta data como as escolas. Não se encontre nesta afirmação qualquer censura ao trabalho que as entidades académicas, institucionais e autárquicas estão a dedicar à data. Deixemo-nos, até, de obliquidades. Está em curso um esforço sério e culto que tem aberto novas páginas sobre o que conhecemos do 25 de Abril e de todo o seu contexto.
As comemorações estão a fazer-se, sem alarde lantejoular e com qualidade interventiva. Dir-se-ia, até, que não existe quem não tenha descoberto este ano uma coisa nova ou duas, realmente importantes, sobre o tema. De tal modo que nem se sabe muito bem como se comemorará a mesma data no próximo ano. O que restará ainda por dizer sobre o 25 de Abril para o ano, sem que nos repitamos? Dá a sensação de que andamos de Salazar na mão a raspar o fundo ao tacho.
A liberdade cristalizada
“Mas as crianças, Senhor“. O que as crianças têm feito pelo 25 de Abril é um absoluto êxito. Um concurso recente, promovido por uma editora, procurou dar plataforma a alguns desses trabalhos escolares e ficou patente, não apenas a diversidade de centenas de perspetivas que foram trazidas a concurso mas, sobretudo, o que uma certa efabulação do 25 de Abril começa a suscitar junto dos nossos miúdos.
Assistimos hoje a um crescente extravio narrativo mais ou menos idealizado do 25 de Abril que, deliberado ou não, começa a transcender a perspetiva estritamente histórica.
Para uma criança, o 25 de Abril não significa o fim de um regime totalitário. Representa, sim, a importância de “sermos livres”. É apenas isto que respondem quando se lhes pergunta qual é o valor desta data. 1974 é tão longínquo e recuado para eles como 1947, 1749 ou 1497. A coisa é tão distante que alguns chamam-lhe a revolução dos “escravos”. É outro planeta. Diz-lhes pouquíssimo. E, aqui para nós, está muito bem assim.
São miúdos que não concebem um país sem liberdade, nem compreendem o conceito de censura; não percebem por que motivo se idolatra um qualquer líder político, ou se prende alguém por cantar uma canção, por ter feito greve ou por pedir um aumento de salário. Para as crianças, comemorar o 25 de Abril não é falar da guerra colonial, da legião portuguesa, do MFA, de Barbieri Cardoso ou de Domingos Abrantes. O 25 de Abril representa a Liberdade. Ponto final. A liberdade é, para qualquer adolescente português, um valor absoluta e instintivamente cristalizado.
Os pais fundadores
Assiste-se hoje a uma notória adulteração daquilo que foi o 25 de Abril. À medida que o tempo se despe dos seus contornos, vamos assistindo a uma sintetização, necessariamente adúltera, da realidade histórica. Toda a síntese nasce de uma certa necessidade de depuração.
O 25 de Abril está em lista de espera para fazer uma lipoaspiração das gorduras inestéticas e fazer um lifting para esconder indisfarçáveis sinais de envelhecimento.
Há uma certa lei do menor esforço que vai fazendo o seu caminho. Nada disto é novo. Praticamente todo o conhecimento histórico está condenado a esta efabulação. Seja onde for e em que contexto for. Quando os norte-americanos falam dos seus “founding fathers” nem suspeitam de tudo quanto não querem conhecer acerca da misantropia, narcisismo, volatilidade de temperamento daqueles homens, daquelas assinaturas constitucionais. Se quiserem recuar um pouco mais, muito menos querem realmente saber da verdadeira natureza e propósitos dos tripulantes do Mayflower.
Os historiadores bem se esforçam por recordar desesperadamente que “o mal está nos detalhes”, mas é inútil.
A biografia não autorizada do 25 de Abril
Uma espécie de historiografia informal vai fazendo o seu caminho de desvirtuamento, seja por preguiça, por entorpecimento, ou por premeditação. Toda a história passa por isso. É por essa razão que o Castelo de São Jorge tem ameias e se conserva, ainda que vazia, a tumba de Napoleão no Vallée do Tombeau, na ilha de Santa Helena.
O 25 de Abril não escapa a esta neblina. Os pormenores vão-se dissipando e forjam-se novos detalhes. Está a ser escrita uma biografia não autorizada do 25 de Abril. E nessa história conta-se pouco mais do que o essencial e o mais vistoso. Que é bom ser livre e que ninguém tem o direito de proibir as outras pessoas de criar, pensar e agir de acordo com as suas convicções. Que ninguém deve ser preso por pensar de um modo que contrarie o poder instituído. Que ninguém deve ser torturado, seja por que motivo for. Que ninguém devia ser condenado a viver na clandestinidade nem a emigrar porque não tem como viver bem no seu país. Que o acesso ao alfabeto deve ser obrigatório e gratuito. E que ninguém devia ser obrigado a ir para uma guerra matar pessoas que lutam por coisas justas. Ora, o 25 de Abril de 1974 é muito, mas muito mais do que isto, certo? Nem por isso.
O que faz falta
De repente, chegados a esta desfiguração do 25 de Abril, vemo-nos conduzidos, pela mão das crianças, aos princípios e valores que cimentaram e deram fundamento à revolução dos cravos.
A síntese do 25 de Abril quando posta “entre as mãos de uma criança”, revela aquilo que de mais poderoso deu origem à revolução. Os nossos miúdos não sabem nem sonham o que representa a ausência da liberdade. E é precisamente por não saberem, que nem sequer lhes passa pela cabeça aceitar uma vida sem ela. E isso é mesmo tudo aquilo que é indispensável que retenham, quando cantam o “Grândola, Vila Morena”.
O que faz falta é isto mesmo. Esta perspectiva onírica, estilizada, idílica, juvenil, de uma revolução de 1974 que devolva à memória algo que nem sempre os historiadores se empenham em sublinhar. Que não haveria revolução sem coragem nem traição, sem bravura nem cobardia, sem clareza e sem mentira. Que o 25 de Abril é uma soma de coisa nenhuma se lhe amputarmos a flor da dignidade, o pão da justiça, a educação da honra, tudo coisas furtivas, pouco mais do que brios confidenciais.
Ver como as escolas portuguesas estão a dar plataforma à afirmação dessa invisibilidade imaterial que é o amor pela democracia e pela decência humana é algo tão comovente como ver um grupo de crianças a cantar o "Somos livres”. Afinal, para que serve uma escola, para que serviria o 25 de Abril, se não para avisar que o sonho é uma forma de poder, destinado a comandar a vida?