País

Exclusivo Online

"Férias grandes": o que devem as crianças fazer em três meses sem escola?

"A ideia de que as crianças têm de estar sempre ocupadas leva a que muitas vezes os pais as inscrevam em muitas atividades. É frequente terem agendas mais exigentes que as dos adultos", alerta a autora do livro "Movimento e Brincadeira nos Primeiros Anos de Vida", Rita Cordovil. Já Marco Leão, terapeuta ocupacional pediátrico, sugere algumas atividades para as crianças aproveitarem as férias escolares de forma saudável e divertida.

"Férias grandes": o que devem as crianças fazer em três meses sem escola?
paci77

As chamadas "férias grandes" já chegaram para alguns jovens e em breve é a vez das crianças do primeiro ciclo. Junho é o mês de fim das aulas. Depois, seguem-se três meses sem escola, até meados de setembro. Mas o que devem as crianças fazer nas férias? Como podem os pais - que continuam a trabalhar - manter os filhos entretidos de forma saudável e divertida? A SIC Notícias falou com dois especialistas.

"As férias são uma escola por si só. Uma escola de vida, carregada de oportunidades para as crianças aprenderem de forma diferente e divertida. E para isso, brincar basta. Se não for assim nas férias, quando será?", questiona Marco Leão, terapeuta ocupacional pediátrico, fundador da AcademiaPediatrica.com.

Brincar com amigos, sobretudo ao ar livre, em contacto com a natureza. Ir à praia ou ao campo em família ou com amigos. São duas ideias apontadas por Rita Cordovil, professora associada na Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa e autora do livro "Movimento e Brincadeira nos Primeiros Anos de Vida", da Fundação Francisco Manuel dos Santos.

As atividades no exterior contribuem para o bem-estar mental e emocional das crianças, acrescenta Marco Leão.

A importância do "brincar livre"

Nestes momentos, é importante que os adultos controlem o instinto protetor e deixem as crianças "brincar livremente, testando os seus limites, sem as estarem sempre a interromper", assinala Rita Cordovil. A supervisão é "importante", sobretudo em ambientes com maior risco de se magoarem, mas "não deve ser exagerada". Rita Cordovil diz que deve ser dada a oportunidade de as crianças serem criativas e resolverem os próprios desafios e problemas, até para perceberem as consequências dos seus erros.

"O brincar livre é uma necessidade vital para as crianças de hoje, especialmente considerando que, durante o ano letivo, elas têm agendas muito preenchidas. Brincar livremente permite que as crianças desenvolvam a criatividade, a resolução de problemas e capacidades sociais de forma natural e espontânea", reforça Marco Leão.

É "fundamental para o desenvolvimento cognitivo, emocional e social" o brincar livre, sem a estrutura rígida de atividades programadas, acrescenta. Devem até correr "riscos calculados", ou seja, experimentem, tentem coisas novas e aprendam com os erros.

O também diretor do KiniKids, Centro de Terapia Ocupacional Pediátrica, diz que as férias são uma "excelente oportunidade" para as crianças se dedicarem a atividades como brincar, aproveitar momentos de lazer e socializar. Na mesma linha, a professora da Faculdade de Motricidade Humana refere que ter tempo livre é fundamental.

"A ideia de que as crianças têm de estar sempre ocupadas leva a que muitas vezes os pais as inscrevam em muitas atividades e é frequente terem agendas mais exigentes que as dos adultos. Ter algum tempo verdadeiramente livre é importante durante o ano letivo e também nas férias", diz Rita Cordovil.

Se houver necessidade de inscrever as crianças em atividades de férias, para Rita Cordovil, devem ser ouvidas sobre as suas preferências. Contudo, devem ser privilegiadas atividades ao ar livre e na natureza e que envolvam atividades divertidas e adequadas ao nível de desenvolvimento.

Campos de férias são uma "excelente maneira" de proporcionar às crianças novas experiências e oportunidades de socialização, exemplifica Marco Leão, uma vez que têm uma diversidade de atividades, como desportos, artes e artesanato. É também o caso de semanas desportivas organizadas pelas autarquias ou atividades que incluem visitas a museus, workshops educativos e eventos culturais.

É também importante que os pais incentivem as crianças a "envolver-se em hobbies e interesses pessoais, como a leitura, jardinagem, ou mesmo a culinária". Estas atividades permitem que explorem "novas paixões e desenvolvam competências" de forma divertida e relaxada.

"A chave é encontrar um equilíbrio que permita que as crianças sejam crianças, aproveitando ao máximo a liberdade que as férias proporcionam", assinala o investigador assistente na Colorado State University, nos Estados Unidos.

Crianças fechadas no quarto e em frente a ecrãs? Pode ser "nefasto"

Os dois especialistas contactados pela SIC Notícias concordam que o tempo em casa será negativo, se as crianças se fecharem numa divisão e passarem a maior parte do dia "em frente à televisão, tablets ou telemóveis".

"Vários estudos demonstram uma relação clara entre a falta de atividade física, a ausência de exposição solar e o uso excessivo de gadgets eletrónicos. Isso pode ter um efeito nefasto na saúde mental e física das crianças. O tempo excessivo de ecrã, por exemplo, está ligado a problemas de sono, aumento de ansiedade e dificuldades de concentração", adianta Marco Leão, doutorando e Investigador Assistente na Colorado State University, EUA.

Já Rita Cordovil diz que, se estiveram em casa a "brincar sentadas, só com amigos virtuais" estarão a perder oportunidades de experiências positivas para o seu desenvolvimento.

No entanto, ficar em casa também pode ser positivo, sinaliza a professora associada na Faculdade de Motricidade Humana, sobretudo se estiverem com amigos ou irmãos, e se tiverem "tempo, espaço e permissão para brincar livremente".

É possível, sim, criar um ambiente em casa estimulante ao desenvolvimento saudável. Marco Leão apresenta algumas ideias:

  • Atividades manuais e criativas: desenhar, pintar, fazer artesanato ou mesmo cozinhar (estimulam a criatividade e a coordenação motora);
  • Leitura e jogos de tabuleiro são "ótimos para desenvolver habilidades cognitivas e de resolução de problemas", além de serem uma oportunidade para a interação familiar;
  • Atividades físicas em casa: dançar, sessões de ioga, ginástica infantil e o brincar livre e imaginativo são diferentes formas de manter as crianças ativas em casa;
  • Tempo ao ar livre: se houver um jardim ou um parque próximo, pode aproveitar esses espaços para brincadeiras e atividades ao ar livre;

A importância do contacto com outras crianças

É "fundamental" criar oportunidades para as crianças socializarem e interagirem com outras crianças nas férias e não se isolarem. Além dos campos de férias, semanas desportivas ou atividades comunitárias, pode organizar encontros com amigos ou visitas a parques.

"Somos seres sociais e precisamos do contacto com os pares para estarmos bem emocionalmente. Infelizmente, em muitos casos, quando as crianças ficam de férias, há um grande isolamento, especialmente no que toca ao contacto com outras crianças. Muitas vezes, vemos crianças que passam as férias em casa com avós ou outros familiares que estão reformados. Embora esta convivência traga coisas muito boas, limita-lhes o acesso a oportunidades sociais e de aprendizagem com outras crianças", explica o terapeuta ocupacional pediátrico.

Este isolamento pode levar a sentimentos de "solidão reais e profundos". As crianças precisam do contacto com os pares para desenvolverem "capacidades sociais e emocionais adequadas". Sem este contacto, podem sentir-se "isoladas e desmotivadas", alerta Marco Leão.

Além disso, algumas crianças sentem-se mais confortáveis se estiverem a brincar perto dos adultos, uma vez que estão habituadas a tê-los sempre perto delas. Com o crescimento, é importante que se fomente a autonomia, que aprendam a lidar com o tédio.

"Os pais podem ajudar nesse processo, evitando a preencher constantemente todos os vazios da vida da criança. É neste confronto com o tédio que elas vão encontrar a energia necessária para imaginar e criar novas brincadeiras. Se houver outras crianças com quem brincar, geralmente este processo é mais fácil", explica a autora do livro "Movimento e Brincadeira nos Primeiros Anos de Vida".

Marco Leão alerta: é importante que os adultos estejam atentos a sinais comportamentais que possam indicar que a criança se sente "frustrada, zangada e triste". É o caso de:

Choro mais frequente do que o habitual: as crianças podem chorar mais facilmente ou por razões que normalmente não causariam choro;

Mais birras e comportamentos desafiantes: a frustração e a tristeza podem manifestar-se em birras mais frequentes e comportamentos desafiantes, como desobediência e irritabilidade;

Problemas de sono: Mudanças nos padrões de sono, como dificuldades em adormecer, acordar frequentemente durante a noite ou pesadelos, podem ser indicativos de stress emocional;

Apatia e letargia: a falta de interesse em atividades que normalmente gostam, bem como um comportamento letárgico ou desmotivado podem ser sinais de que algo não está bem;

Falta de apetite: mudanças no apetite, seja uma diminuição ou aumento exagerado, podem indicar que a criança está a lidar com emoções difíceis;

Agressividade: em alguns casos, as crianças podem expressar os seus sentimentos de solidão e frustração através de comportamentos agressivos, como bater, morder ou discutir mais frequentemente;

Se os sinais de stress e solidão forem "evidentes", é sinal que algo terá de mudar. Se persistirem depois da inclusão em atividades com outras crianças, deve procurar a ajuda de um profissional, como um terapeuta ocupacional ou um psicólogo infantil, para apoio adicional e estratégias específicas para a criança.

Rotinas (ou ausência delas) são um problema?

As alterações de rotina são uma das maiores mudanças nas férias. No tempo de aulas, a escola proporciona uma rotina muito estruturada: as crianças deitam-se cedo, acordam cedo e sabem o que o dia lhes reserva. Sem escola, o dia torna-se mais imprevisível.

Os nosso cérebros "não gostam de imprevisibilidade", reconhece Marco Leão, por isso, as crianças podem sentir-se "perdidas, mais resistentes a fazer coisas e a aumentar os comportamentos desafiantes".

Estas são algumas estratégias, sugeridas pelo diretor do KiniKids, Centro de Terapia Ocupacional Pediátrica, para lidar com as alterações de rotina:

Criar um horário visual: utilizar um quadro ou uma tabela com imagens para representar as atividades diárias pode ser muito útil, especialmente para crianças mais novas ou neurodivergentes;

Manter algumas rotinas constantes: mesmo nas férias, é benéfico manter algumas partes da rotina diária constantes, como horários de refeições e de sono. Isso proporciona estabilidade;

Incluir a criança no planeamento: envolver a criança na criação do plano semanal pode aumentar a sua aceitação e entusiasmo pelas atividades previstas;

Flexibilidade estruturada: embora a flexibilidade seja importante durante as férias, uma estrutura básica pode ajudar a equilibrar a necessidade de liberdade com a necessidade de previsibilidade.

Por norma, as crianças adaptam-se bem a alterações nos horários ou tipos de refeições, se estiverem a dar um passeio. No entanto, acrescenta Rita Cordovil, tenderão a não se adaptar tão bem a alterações nos horários do sono. Quando descansam pouco, ficam mais cansadas e com pior humor, sobretudo as crianças mais novas.

Descanso e atividades mais livres e exploratórias

O terapeuta ocupacional pediátrico contactado pela SIC Notícias explica que deve haver um "equilíbrio ocupacional", ou seja, a criança deve ter oportunidades para se envolver em diferentes ocupações, dedicar tempo a atividades mais livres e exploratórias, e descansar.

As crianças podem, por exemplo, aprender a nadar, a explorar a natureza, descobrir e fortalecer o corpo através de atividades físicas, aprender técnicas de pintura ou fazer peças de barro. Estas são "formas valiosas de aprendizagem", refere o especialista.

Rita Cordovil acrescenta que também é importante que haja tempo para "parar, sentir, estar consigo e descansar".

"Os adultos não deverão sentir a responsabilidade de ter de manter as crianças entretidas o dia inteiro. Mas como não há receitas, o equilíbrio ideal entre os momentos de descanso e os programas mais ativos depende das características de cada criança e de cada família", afirma a professora.

Para Marco Leão, as tarefas domésticas devem ocupar "o menor tempo possível do dia", idealmente entre 1 a 2 horas. O restante deve ser preenchido com "atividade física e muita brincadeira livre".

Além disso, cada criança é única e tem o seu próprio ritmo. É fundamental para um "equilíbrio saudável" que se respeitem necessidades individuais de descanso e atividade.

"Dê ouvidos à criança. Todos queremos que as crianças cresçam e se tornem adultos saudáveis, felizes, capazes de tomar boas decisões, mas depois decidimos tudo por elas e nunca lhes damos oportunidade de escolher. Nestas férias encontre formas de deixar a sua criança decidir o que quer fazer. Promova a sua autonomia e poder de decisão", recomenda o terapeuta.