O problema começa nos sistemas informáticos. Os dois principais utilizados pela ULS Amadora-Sintra não estão preparados para se ligarem a outras ferramentas informáticas, nomeadamente as que fazem a triagem dos doentes enviados pelos centros de saúde.
Esse é um dos motivos pelos quais o hospital frequentemente recorre à "impressão de documentos" ou até ao "preenchimento de formulários em papel" para a triagem.
No relatório da auditoria da Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) a que a SIC teve acesso, os inspetores confessam "perplexidade" com o que encontraram. A situação "é agravada pela distinta proveniência dos pedidos referenciados", já que as solicitações de consulta, em papel, podem vir tanto da Urgência ou do Internamento como de entidades externas à própria ULS, por exemplo, privados ou entidades do setor social.
Sistema do Amadora-Sintra é suscetível a "cunha"
A IGAS não tem dúvidas de que a triagem feita com recurso a papel "com critérios não conhecidos" acaba por potenciar "situações de menor transparência e geradoras de uma gestão inadequada" das listas de espera para consulta, "não permitindo o controlo rigoroso dos critérios de agendamento e reagendamento das vagas disponíveis de acordo com a antiguidade e nível de prioridade de cada episódio."
O hospital está, por isso, mais suscetível à chamada 'cunha', já que o procedimento permite que doentes com situações mais ligeiras possam passar à frente de outros com quadros de maior gravidade, assim como utentes que esperam há mais tempo podem estar a ser ultrapassados por outros que entraram na lista recentemente.
A convicção dos inspetores é agravada pelo facto de 97,83% das quase 230 mil consultas realizadas no ano passado não terem nível de prioridade atribuído. A auditoria indica que, em 16 especialidades, como Urologia, Psiquiatria e Oncologia, não há um único processo com nível de prioridade registado.
Além disso, os inspetores até encontraram casos em que a consulta aconteceu antes de o doente ser inscrito na lista de espera e 186 situações em que os doentes foram atendidos "no próprio dia" em que entraram na lista, mesmo não tendo qualquer nível de prioridade atribuído.
"Todas estas situações afetam a fiabilidade e transparência dos dados reportados e constituem um risco de fraude", conclui a IGAS.
Ao contrário do que acontece num hospital privado, em que o utente pode marcar uma consulta de especialidade por sua iniciativa, no serviço público o acesso à primeira consulta de especialidade só ocorre após referenciação. Normalmente é o médico de família que faz esse pedido, mas há outras formas de aceder às consultas de especialidade, por exemplo, através da Urgência hospitalar.
Auditoria revela desorganização nas listas de espera
A auditoria ao acesso à primeira consulta de especialidade hospitalar na Unidade Local de Saúde de Amadora-Sintra começou a ser feita em janeiro e analisou o período entre 2022 e 2024. O relatório, a que a SIC teve acesso, tem vários exemplos que mostram desorganização nas listas de espera.
Foi encontrado um pedido de consulta feito no dia 3 de dezembro de 2021 que, no final de 2023, ainda estava na triagem, volvidos 758 dias. Mesmo nos casos em que há prioridade definida, isso não garante atendimento dentro do prazo definido na lei. O relatório refere a situação de um doente "prioritário com 88 dias de espera" pela primeira consulta.
Na Oncologia, situação semelhante: uma mulher, com suspeita de cancro, foi referenciada no verão de 2024, mas só foi chamada para consulta mais de seis meses depois, a 31 de janeiro de 2025. O tempo máximo estipulado para estes casos é de 60 dias.
Há também casos de utentes referenciadas, ao mesmo tempo, para o Amadora-Sintra e para o IPO de Lisboa. As consultas acabaram por acontecer no IPO, mas os pedidos para o hospital Amadora-Sintra nunca foram cancelados. As utentes foram chamadas, meses depois, para consultas de que já não precisavam e faltaram, ficando a ocupar vagas que seriam necessárias para outras pessoas.
Nos processos analisados pelos inspetores há, por exemplo, o caso de uma utente que, depois de fazer exames, deixou de precisar da consulta, mas o pedido nunca foi cancelado. Há situações em que houve mudança de médico de família, e em que o novo clínico não consegue cancelar os pedidos feitos pelo anterior.
Há até dois casos de pedidos de consulta de Obstetrícia, por engano, quando as utentes queriam fazer uma interrupção voluntária da gravidez. O pedido de consulta deveria ter sido recusado, mas, ao fim de dois anos, continuava em lista de espera.
Utentes em lista desde 1996 devido a erro
E há situações mais insólitas: os inspetores encontraram o processo de um utente que, em agosto de 2023, esteve em lista de espera "devido a engano". É que o último contacto desse utente com o hospital tinha acontecido em 1996. E não é caso único: no ano passado deu entrada na lista o pedido de consulta de um utente que não estava em contacto com o hospital desde 1997. Este caso só foi descoberto porque entrou na amostra usada pela IGAS para a auditoria.
Tendo tudo isto em conta, não admira que o número de doentes que estão há mais de nove meses à espera de consulta tenha disparado nos últimos três anos: passou de 2.720 em 2022 para quase o triplo no ano passado.
A IGAS critica ainda a "falta de articulação" entre os centros de saúde e o hospital Amadora-Sintra. Refere que "não existem canais internos ou externos adequados para esclarecer as dúvidas dos médicos referenciadores das unidades funcionais dos CSP (Cuidados de Saúde Primários)". Ou seja, até os médicos de família têm dificuldade em ter informação sobre o percurso do doente até conseguir aceder à consulta de especialidade.
Há um caso, por exemplo, em que um pedido de consulta de Pneumologia foi devolvido ao centro de saúde sem que o utente tivesse sido avisado. Só após reclamação, motivada pelo tempo de espera excessivo, é que o doente foi chamado para ir novamente ao centro de saúde. Entre a primeira e a segunda consulta passaram 127 dias, ou seja, quatro meses.
IGAS fez 25 recomendações à ULS Amadora-Sintra
A IGAS conclui que há falta de transparência, equidade e igualdade no acesso à primeira consulta e fez 25 recomendações à ULS Amadora-Sintra.
Contactada pela SIC, a administração do hospital disse não ter disponibilidade para gravar entrevista em tempo útil e também não respondeu às perguntas que enviámos por escrito.