Jéssica, a menina de três anos que morreu na segunda-feira, apresentava nódoas negras na cara, braços e pernas, hematomas no abdómen e pupilas dilatadas. Para a socióloga Dalila Cerejo, “seria difícil” que ninguém reportasse a situação, até porque se deve ter ouvido o choro desesperado da criança.
Numa análise na SIC Notícias, Dalila Cerejo, socióloga do Observatório Nacional de Violência e Género da Universidade Nova de Lisboa, começou por dizer que, apesar de trabalhar de perto com as questões de violência contra mulheres e crianças há muito tempo, este é um caso que acaba por a “sensibilizar e chocar”.
“Quando uma situação destas acontece, toda a sociedade em linha falha. Falhamos todos porque o dever supremo de uma sociedade democrática é a proteção das crianças”, disse a socióloga acrescentando, no entanto, que “uns com mais responsabilidade, outros com menos”.
Apesar de ainda não terem sido apurados os culpados pela morte da pequena Jéssica, Dalila Cerejo considera “estranho, dado o quadro de maus tratos, que ninguém naquele prédio, ninguém naquela vizinhança”, tenha ouvido barulhos suspeitos.
“A ser verdade, seria uma situação que me surpreenderia imenso”, continuou.
Além disso, a socióloga considera que da parte dos tutores legais, “em particular da mãe”, tenha existido um quadro de alguma negligência.
“Também não se sabe bem porque é que a criança ficou lá cinco dias, se se trata efetivamente de um quadro de sequestro, porque é que esse sequestro não foi comunicado às autoridades e, portanto, há ainda muita coisa para saber”, disse.
Relativamente às críticas que têm surgido à Comissões de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ), já que Jéssica estava sinalizada desde o primeiro mês de vida, Dalila Cerejo garante que “todos os técnicos fazem o melhor que podem”, mas que, com a pandemia de covid-19, “as equipas tiveram muita dificuldade em estar no terreno”.
“Importa perceber quem é que falhou, como é que falhou e assacar todas as responsabilidades”, continuou.
Em Portugal, no ano de 2021, existiam “41 mil crianças sinalizadas pela CPCJ”, mas, “verdadeiramente, não se sabe o número de crianças em perigo”.
“Todos estes números são a ponta do icebergue”, atirou.
“Ainda não estamos bem conscientes, enquanto sociedade, das responsabilidades morais e éticas de proteção dos nossos pares”, disse Dalila Cerejo.
Relativamente à expressão que o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, usou para falar do caso – “miséria moral” -, a socióloga disse que “é, de facto, um caso com contornos muito macabros“.
“O crime de violência doméstica, no qual se poderia enquadrar esta situação, é um crime” que foi “tornado público precisamente para assegurar que qualquer cidadão ou cidadã tem o dever de denunciar casos de violência”, explicou.
Dalila Cerejo, que considera difícil que as agressões à menina não tenham sido reportadas, disse ainda que “os contornos são estranhos”, já que uma criança foi agredida durante cinco dias e não houve “uma sinalização de um choro, de barulhos, de coisas a partir – o que é muito frequente em casos de violência”.
“Somos, de facto, muito tolerantes ao uso da violência e somos uma sociedade que continua a utilizar a violência como modo de correção ou disciplinar”, acusou, acrescentando que “continuamos, de alguma forma, a assobiar para o lado”.
“Com os tempos que vivemos, de instabilidade social, temo que não teremos bons dias no futuro”, concluiu.
Saiba mais
- Morte de criança em Setúbal: o que se sabe até ao momento
- Morte de Jéssica: pais podem vir a ser acusados por violação dos direitos parentais
- Jéssica sofreu maus-tratos na casa de conhecida da mãe: vizinhos surpreendidos com caso
- Morte de criança em Setúbal: “Falhou todo o processo, desde a comunidade, à CPCJ, à saúde e à justiça”
- Morte de menina em Setúbal: Presidente Marcelo pede uma “reflexão” sobre a “miséria moral”
- Morte de menina em Setúbal? “Obviamente, aquilo que aconteceu é algo que choca todos”