Que Voz é Esta?

"Uma criança dizia-me “só te conto o que o meu avô me fez se prometeres que não é preso"; há às vezes uma tentativa de proteger o agressor"

O abuso sexual, em particular na infância, deixa marcas para a vida e pode ter um impacto profundo no bem-estar psicológico e até na saúde física. O mais recente episódio do podcast “Que Voz é Esta?” aborda o trauma provocado por abusos sexuais e a ignorância que ainda existe em torno destas situações, com as explicações da psicóloga Rute Agulhas, coordenadora do grupo de apoio às vítimas da Igreja, e da vice-presidente da Associação de Mulheres Contra a Violência

A ocorrência de algum tipo de abuso sexual na infância ou na adolescência é mais frequente do que deixam transparecer as estatísticas porque, muitas vezes, a denúncia demora anos ou nunca chega sequer a ser feita. Os sentimentos de culpa e vergonha que habitualmente as vítimas carregam consigo inibem a revelação dos casos, que provocam um trauma profundo e duradouro.

A relação prévia de confiança que muitas vezes existe com o abusador também torna mais difícil a denúncia dos casos, na medida em que pode gerar conflitos de lealdade. “Ainda na semana passada, uma criança dizia-me “Rute, eu só te conto o que é que o meu avô fazia se tu me prometeres que o avô não é preso", explica a psicóloga clínica Rute Agulhas, no mais recente episódio do podcast “Que Voz é Esta?”

A especialista frisa que, apesar de “andarmos a ensinar mal as crianças, dizendo-lhes para só terem medo de estranhos”, a grande maioria dos abusos é mesmo cometida no seio da família ou por pessoas próximas do menor, o que agrava o impacto psicológico, uma vez que “potencia uma sensação de traição, impotência e desconfiança generalizada”. A criança passa a não confiar em ninguém porque acredita que “todos são potencialmente abusadores”, o que dificulta a capacidade de estabelecer relações de intimidade.

No podcast do Expresso dedicado à saúde mental, a coordenadora do Grupo Vita, que dá apoio psicológico às vítimas de abusos no seio da Igreja, explica que a gravidade do trauma depende de muitas variáveis, desde logo relacionadas com o abuso, nomeadamente a sua frequência, a identidade do agressor e as estratégias que utilizou. A auto-estima da vítima e a sua capacidade de resiliência são igualmente muito importantes.

A reação do meio perante uma tentativa de denúncia também tem um impacto decisivo. “Se houver uma reação positiva de suporte, em que se acredita na criança, isso vai minimizar o efeito traumático daquela vivência”, diz Rute Agulhas.

A psicóloga Rute Agulhas, coordenadora do grupo Vita, que dá acompanhamento às vítimas de abuso sexual no seio da Igreja, foi uma das convidadas do mais recente episódio do podcast "Que Voz é Esta?"
José Fernandes

"Por que é que não fugiste?"

A psicóloga sublinha a importância fundamental de apostar na formação de profissionais como professores, psicólogos, forças de segurança e magistrados, para que “estejam minimamente preparados e sensibilizados para saber o que dizer e o que não dizer” a uma vítima.

“Quando um juiz, um psicólogo ou um técnico se vira para a criança e pergunta “por que é que não fugiste? Por que é que não gritaste?” este tipo de perguntas reforça a culpa que a criança já traz por si própria”, explica.

Questões deste género refletem um profundo desconhecimento da “dinâmica dos abusos” e do comportamento do cérebro perante agressões sexuais, corrobora Margarida Medina Martins, vice-presidente da Associação de Mulheres Contra a Violência (AMCV), frisando que uma situação intimidatória pode “congelar” a vítima.

A decisão de não gritar ou tentar fugir não depende da sua vontade, mas do mecanismo de sobrevivência que o cérebro ativa perante uma ameaça e que, em milésimos de segundo, avalia qual é a melhor estratégia para sobreviver, o que em muitos casos pode passar por não resistir, explica.

“Vi uma notícia sobre um menino de 11 anos que foi abusado e o juiz considerou que ele tinha consentido e que até tinha tido prazer porque teve uma ereção, quando uma ereção é uma resposta biológica que não tem nada a ver com vontade. Os abusadores estarão sempre à solta porque reina a ignorância nesta área em Portugal”, lamenta.


A vice-presidente da Associação de Mulheres Contra a Violência, Margarida Medina Martins, foi uma das convidadas do episódio do podcast "Que Voz é Esta?" dedicado ao trauma provocado por abusos sexuais
José Fernandes

Promover o crime

Além da falta de formação de muitos profissionais, nomeadamente a nível da justiça, a responsável da AMCV lamenta a ausência de uma política integrada para a prevenção da violência sexual.

“O país tem uma estratégia para quase tudo, mas não as integra. No terreno já não há profissionais nem equipas que aguentem tanta reunião. Há um consumo de tempo e da energia em reunir para o plano e para a estratégia, mas não há um trabalho integrado na comunidade", critica Margarida Medina Martins. E vai mais longe: "A intervenção que se faz em Portugal na prevenção dos abusos é promotora de crime porque o grau de eficácia é muito baixo”.

No que diz respeito à prevenção, a psicóloga Rute Agulhas defende que é preciso apostar no tratamento dos abusadores sexuais, uma vez que a probabilidade de reincidência é muito alta, se não forem alvo de uma intervenção especializada.

“Ficamos todos ingenuamente tranquilos quando a pessoa vai presa x anos, mas entretanto sai e vai repetir o comportamento. A intervenção [psicológica nestes casos] é muito exigente e muito complexa, mas sem ela muitas outras crianças poderão vir a ser vítimas daquela pessoa”, alerta.

Para a especialista, a intervenção tem de ser estendida igualmente a pessoas que tenham fantasias sexuais com menores mas que ainda não cometeram nenhum crime. Para isso, é necessário criar mecanismos anonimizados que permitam que possam pedir ajuda.

Viver com as memórias

Relativamente às vítimas, Rute Agulhas explica que não é possível “curar o trauma”, mas é possível, com acompanhamento psicológico, aprender a viver com ele. “Não há uma borracha mágica que apague a memória de abusos. Mas com um processo de intervenção especializado é possível aprender a viver com estas memórias e fazer com que não interfiram no funcionamento e no bem-estar da pessoa”, diz.

Neste processo, os grupos de ajuda mútua, que juntam vítimas de violência sexual, podem desempenhar um papel muito importante na recuperação, proporcionando um espaço seguro para falarem do que aconteceu.

A Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, a Associação de Mulheres Contra a Violência, a associação Quebrar o Silêncio e o grupo Emancipação, Igualdade e Recuperação da UMAR dão um apoio fundamental nesta área.

“Que voz é esta?” é o nome do podcast do Expresso dedicado à saúde mental. Todas as semanas, as jornalistas Joana Pereira Bastos e Helena Bento dão voz a quem vive com ansiedade, depressão, fobia ou outros problemas de saúde mental, ouvindo igualmente os mais reputados especialistas nestas áreas. Sem estigma nem rodeios, fala-se de doenças e sintomas, tratamentos e terapias, mas também de prevenção e das melhores estratégias para promover o bem-estar psicológico. O podcast conta com o apoio científico de José Miguel Caldas de Almeida, psiquiatra e ex-coordenador nacional para a saúde mental.

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