Eduardo Jesus, 79 anos, ainda tem dificuldade em descrever com exatidão o odor que tem sentido em casa nos últimos meses. “É um cheiro nauseabundo tremendo que parece azeitona podre.”
Há 50 anos a viver na localidade de Fontela, em Vila Verde, Figueira da Foz, não entende como foi possível ter-se autorizado a construção, a poucas centenas de metros de casa, de uma fábrica que transforma óleos alimentares usados e ácidos gordos em biocombustível.
“Um gajo estava no sossego e agora estamos aqui a suportar este cheiro”, lamenta.
Estender a roupa é outro desafio.
“É muito difícil porque depois vai apanhar-se e tem um cheiro esquisito porque aquele cheiro entranha-se na roupa”, conta.
“Às vezes esqueço-me, deixo a janela do quarto aberta e quando a vou fechar, já está o cheiro cá dentro”, acrescenta a mulher, Maria de Lurdes Jesus.
As queixas começaram no verão, quando a empresa - Bioadvance, The Next Generation, Lda - foi ligada à rede elétrica.
“Quando ela começou a trabalhar, começámos a sentir que algo não estava bem”, diz à SIC o presidente da Junta de Vila Verde, Vítor Alemão. Só aí é que a população percebeu exatamente que tipo de fábrica se tinha instalado na vizinhança.
“Quando ela começou a aparecer, toda a gente dizia que iria ser muito bom para a zona”, lembra à SIC Celeste Miguéis, moradora de Fontela.
Foi anunciada como “uma das maiores fábricas de biocombustíveis avançados da Europa” e a AICEP (Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal) atribuiu-lhe o selo de Projeto de Potencial Interesse Nacional - um estatuto que, apesar de não dispensar a empresa de cumprir todos os passos do licenciamento, garante que o projeto é acompanhado regularmente e em simultâneo por todas as entidades com responsabilidade.
O porto da Figueira da Foz assinou o acordo de concessão com o proprietário da empresa "pelo prazo de 15 anos" contados a partir da data da assinatura: o dia 30 de agosto de 2022. Na página na Internet, dias depois, o porto anunciou o investimento como a concretização de um "objetivo estratégico".
Já a Câmara Municipal, por proposta assinada pelo presidente, Pedro Santana Lopes, em fevereiro de 2024, reduziu-lhe as taxas para metade. O autarca confirmou numa Assembleia Municipal Extraordinária que pediu ao empresário para ser o município a fazer o anúncio público do investimento em 2022. Nesse ano, fez saber que estava a acompanhar a implementação do projeto.
“O papel da Câmara é muito importante (...) muitas vezes também para motivar e garantir o licenciamento em tempo útil”, disse Santana Lopes, presidente da autarquia, ao ser questionado sobre o papel da Câmara na vinda da Bioadvance para o concelho, durante uma entrevista, a 27 de julho de 2022, no ciclo de conversas Dez&10, promovido pelo Diário As Beiras em parceria com a Groovit, no Casino Figueira.
Para apoiar o investimento, que inicialmente se estimava ser de 11 milhões de euros, a empresa recebeu ainda fundos comunitários do Projeto de Resposta à Pandemia no valor de 3,65 milhões de euros.
A construção da fábrica começou em 2023 sem que a empresa tivesse Título Digital de Instalação, o documento que atesta que cumpriu as regras do licenciamento. Ou seja, defende a CCDR-Centro, a empresa nunca poderia ter sido construída. Ainda hoje não tem esse documento, o que não a tem impedido de funcionar.
“O certo é que nós que trabalhamos aqui no porto diariamente, dia e noite, sentimos que a fábrica funciona porque o corrupio de camiões cisterna, a entrar e a sair, e os cheiros que aquilo liberta, principalmente à noite, não enganam ninguém”, diz Paulo Mariano, vice-presidente da Comunidade portuária da Figueira da Foz.
O proprietário da Bioadvance disse às autoridades que a empresa apenas se encontra a fazer testes - uma figura que não existe na lei.
“É a empresa mais moderna a nível mundial. Não pode haver cheiros naquela empresa. Estamos em fase de afinação e de testes. Quando vai ao mecânico com o seu carro, quando ele não fuma bem, tem de ir afinar”, disse o empresário, Paulo Gaspar, numa Assembleia Municipal Extraordinária, em outubro do ano passado, que teve o assunto na ordem de trabalhos.
A população não acredita.
“Os testes eram de tal maneira tão bem feitos que até um navio veio carregar 2 400 toneladas de produto”, conta o presidente da Junta, Vítor Alemão.
“Nós não podemos acreditar que um navio vem buscar 2 400 toneladas de produto de testes.”
O autarca refere-se ao navio “Sir John Fisher”, proveniente de Leixões, que atracou no terminal de graneis líquidos do porto da Figueira da Foz, onde está localizada a Bioadvance, no dia 1 de fevereiro e partiu quatro dias depois para Roterdão, nos Países Baixos.
“Agora penso eu, se os testes são isto, quando estiver realmente a funcionar, o que é que será?”, diz Celeste Migueis.
Consulta pública aberta quando empresa já estava construída
A 19 de novembro de 2024, a Agência Portuguesa do Ambiente abriu a consulta pública ao projeto da Bioadvance no porto da Figueira da Foz. Só que, nessa altura, a empresa já estava construída e a funcionar. A consulta nem sequer chegou ao fim: foi interrompida a 11 de dezembro do ano passado, 5 dias antes do previsto, porque, por ter sido “identificado que a instalação está abrangida pelo Regime de Prevenção de Acidentes Graves, o processo foi indeferido”.
Câmara passou licença de construção
A Bioadvance está instalada no porto da Figueira da Foz, uma área que tem jurisdição especial. A Câmara Municipal da Figueira entendeu que tinha de aprovar o projeto de arquitetura e passar licença de construção.
Os documentos do município a que a Investigação SIC teve acesso indicam que a aprovação do projeto de arquitetura foi comunicada à empresa a “28 de abril de 2023”, quando as imagens de satélite do Google Earth sugerem que a construção da fábrica já tinha começado. Já o “deferimento final do pedido” só aconteceu 9 meses depois, a “20 de dezembro de 2023”.
Salta ainda à vista a licença de construção que o município da Figueira da Foz passou apenas a 29 de abril de 2024. Diz, preto no branco, que existem “condicionamentos das obras”. Um deles, a “apresentação do comprovativo de emissão do título digital de instalação industrial”. Ou seja, quando a licença de construção foi emitida, a obra não só já estava praticamente concluída, como uma das condições da licença estaria a ser violada.
A Câmara Municipal da Figueira da Foz, que considerou que a fábrica da Bioadvance tinha “interesse municipal”, rejeitou dar entrevista.
Histórico da empresa gera preocupação
A Bioadvance tem outra unidade de produção de combustíveis avançados a partir de óleos alimentares usados e ácidos gordos na Guia, em Pombal. Essa fábrica - a primeira do grupo - “esteve a trabalhar desde pelo menos 2017 e até maio de 2023 sem Licença Ambiental”, de acordo com a CCDR-Centro.
“A questão dos maus cheiros é constante, sobretudo no verão”, diz à SIC Sandra Ferreira da Associação de Moradores e Amigos da Guia. “É um cheiro extremamente enjoativo a óleo rançoso”, acrescenta.
Em 2022, quando o empresário quis ampliar esta unidade, a Câmara de Pombal participou na consulta pública. Acusou a Bioadvance de ter “histórico de descargas ilegais e indevidas (...) em especial após períodos de chuva, aos fins de semana ou durante a noite”.
A Bioadvance diz que essa informação “não corresponde à verdade”. Em resposta à SIC esclarece que “a empresa tomou a decisão em 2020 de cancelar a ligação das águas residuais ao colector Municipal, tendo informado o respectivo Município que, desde então, se tem mantido inoperacional, tratando as águas residuais em operadores autorizados.”
As imagens a que a Investigação SIC teve acesso, dão corpo a uma denúncia anónima entregue nessa consulta pública. Fala em “bacias de retenção rotas, cheias de óleos, ácidos e gorduras a serem libertados para o chão”. Diz ainda que as “amostras” das águas que a empresa enviava para análise eram “adulteradas”. Algo que a Bioadvance dizer ser falso.
A Câmara de Pombal conta ainda um episódio em que uma “rotura de válvulas num dos tanques da empresa” fez com que o biodiesel fosse "encaminhado maioritariamente para a ETAR da Guia com consequências desastrosas”.
Tendo este histórico em conta, os habitantes de Vila Verde, na Figueira da Foz, não entendem como se deixou construir uma segunda unidade da empresa empresa em plena foz do rio Mondego.
“Nós não temos garantias nenhumas que o empresário em causa faça descargas diretamente no rio na vazante. Todos os dias há marés de vazante”, diz Paulo Mariano, vice-presidente da Comunidade portuária da Figueira da Foz.
Tanto a atual como a anterior administração do porto da Figueira da Foz rejeitaram dar entrevista à SIC.
Licenciamento em causa
A Bioadvance tentou quatro vezes o licenciamento, que tem sido sucessivamente recusado. O empresário acusa a Agência Portuguesa do Ambiente e a CCDR Centro de falharem os prazos e de serem incompetentes. O proprietário, Paulo Gaspar, chegou a escrever ao ex-Primeiro-Ministro, António Costa, e ao Presidente da República, a pedir para “colocar ambos os responsáveis [da APA e da CCDR-C] no olho da rua pelas suas incompetências e tentativas de atrasar o licenciamento da unidade industrial”.
À SIC a APA diz que o indeferimento é da inteira responsabilidade do empresário e que se deveu “ao incompleto e incorreto preenchimento do simulador” que antecede o licenciamento industrial. “É falsa essa informação, sempre prestámos a informação correta na informação que submetemos”, reagiu Paulo Gaspar, proprietário da Bioadvance, numa resposta por escrito que enviou à SIC.
No processo está descrito que, quando questionada sobre se armazenava matérias perigosas, a empresa disse que não. No entanto, “eles usam metanol, ácido sulfúrico, dióxido de enxofre, etc.”, enumera Guiomar Silva, moradora de Vila Verde.
A Bioadvance insiste que a culpa do insucesso do licenciamento é da Agência Portuguesa do Ambiente e da CCDR-C. “A construção foi iniciada após a submissão do processo de licenciamento, e cujos prazos não foram cumpridos pelas entidades”, explica Paulo Gaspar. Diz que, por causa dos atrasos destas entidades, “a emissão do título de instalação digital deveria ter ocorrido em Outubro de 2024 por deferimento tácito”, acrescenta. O empresário deixa um aviso: “a empresa irá através dos meios próprios exigir a emissão do respectivo título”.
As irregularidades que a SIC começou a investigar no final do ano passado foram agora confirmadas. A ASAE - que nunca respondeu ao nosso pedido de informação - fiscalizou a fábrica, confirmou que estava a trabalhar sem licença e multou-a.
Já a AICEP confirmou à SIC que, no dia 20 de janeiro, após a fiscalização da ASAE, decidiu “suspender imediatamente o acompanhamento PIN [Projeto de Potencial Interesse Nacional] a este projeto". O proprietário contestou e aguarda-se agora decisão final que, apurou a SIC, vai ser tomada no dia 10 de março.
Também a CCDR-Centro tomou uma posição mais musculada. Intimou o proprietário a “cessar imediatamente a atividade” sob pena de “incorrer em crime de desobediência”, punido com prisão até 1 ano.
À SIC, o empresário diz que “vai cumprir tudo quanto lhe for legalmente imposto”.