A história de abusos físicos e psicológicos que marcam os 20 anos de trabalho de Meriam Prado no Líbano é idêntica à da maioria das quase 300 mil empregadas domésticas migrantes no país. São vítimas da Kafala, um sistema próximo da escravatura.
Ao abrigo da Kafala, que vigora em vários países do Médio Oriente, os empregadores contratam mulheres africanas ou asiáticas e pagam-lhes a viagem para o Líbano. À chegada apreendem-lhes os passaportes para que não possam fugir. "São abusadas, física, sexual e mentalmente, são espancadas, e não recebem salário durante anos", denuncia Tsigerêđa Brihañů, da ONG Egna Legna, criada há três anos para apoiar as vítimas da Kafala. "70% dos empregadores deste país não tratam bem as empregadas", garante a ativista etíope, que também sofreu abusos durante os anos em que trabalhou como empregada doméstica.
"Não podemos comer o que eles comem, só os restos, tratam-nos como animais. Eu ia dormir à meia-noite, 1h, 2h da manhã, e acordava às 6h, era demasiado trabalho e não me pagavam salário". O relato é de uma migrante nigeriana que prefere o anonimato por medo de represálias. "Antes de me porem na rua, os meus patrões bateram-me tanto que eu não me pude mexer durante duas semanas".
No último ano, a crise, a pandemia e os efeitos da explosão no porto de Beirute trouxeram à tona um grave problema social que as organizações de Direitos Humanos denunciavam há vários anos. As dificuldades financeiras levaram muitos patrões a pôr as empregadas na rua. Milhares de migrantes foram deixadas em frente às embaixadas dos países de origem, sem dinheiro nem passaportes.
Ahmed e Mahmoud, os dois filhos de Alma Aldaman têm 8 e 10 anos. Trabalham nas plantações de cannabis, no vale de Bekaa, no Leste do Líbano, e nunca foram à escola. Há 4 anos, com o marido desaparecido, Alma e os filhos fugiram de Idlib no norte da Síria, com a roupa que traziam no corpo. Partilham a tenda com a família do tio num dos mais de dois mil campos de refugiados sírios, onde todos os anos os invernos severos fazem vítimas.
Alma diz que chora todos os dias pelos filhos. "São crianças não deviam trabalhar nos campos, deviam estar na escola, mas têm de ganhar dinheiro para podermos comer".
O Líbano tem o maior número de refugiados sírios per capita do mundo, mais de 1 milhão e meio, 25% da população. A subida drástica dos preços nos últimos dois anos deixou-os numa situação ainda mais desesperada. No Líbano, 69% vivem abaixo da linha da pobreza.
Os palestinianos são refugiados há 73 anos, a mesma idade do estado de Israel. Desde que foram expulsos da terra onde viviam há séculos que a comunidade internacional os encara como refugiados temporários. Dependentes da resolução do conflito israelo-árabe, que não parece ter fim à vista, cinco milhões de palestinianos vivem espalhados por vários países, com um estatuto indefinido.
No Líbano, a maioria dos quase 800 mil palestinianos vive em campos sobrelotados, no Sul do país. Não têm acesso às escolas nem aos serviços de saúde públicos libaneses. Não podem comprar casa nem terrenos e estão proibidos de exercer mais de 70 profissões. Estão no país há décadas, mas não têm direito à nacionalidade libanesa.
"Os nossos direitos básicos são os nossos sonhos, nós sonhamos em ter direitos: arranjar trabalho, estudar, ter uma casa". Adbulrahman tem 28 anos e licenciou-se em Contabilidade e Finanças, em Beirute, mas esteve quatro anos desempregado, até arranjar trabalho numa das farmácias do campo de refugiados de Rashidieh, onde vive com a família. "Essa longa espera, parado em casa, quase me destruiu".
"Líbano, numa terra estranha" é o terceiro e último episódio de uma série de Grandes Reportagens sobre este país do Médio Oriente. Com imagem de Odacir Júnior, edição de imagem de Ricardo Tenreiro e grafismo de Cláudia Ganhão.
Veja também:
- Líbano: o Governo somos nós
- Líbano, o governo somos nós (Episódio I)
- Líbano: país por procuração
- Líbano: país por procuração (Episódio II)
- Líbano, numa terra estranha. Mulheres migrantes são usadas como escravas (Episódio III)