Portugal é o parente pobre da Europa em ensaios clínicos

José Fernandes
Susana Neto é uma das doentes oncológicas que participa em ensaios clínicos no IPO do Porto. Submeteu-se aos testes quando, em 2017, em silêncio e de coração apertado, recebeu a notícia que mais receava — “cancro da mama triplo negativo” — para o qual, informou-a o médico, ainda não existia medicação específica. Dois anos depois, recorda o momento: “Só tinha como hipótese de tratamento a quimioterapia. Se falhasse, não teria outra alternativa. Logo, o benefício de submeter-me ao ensaio seria sempre superior a eventuais prejuízos. Iria pesar-me muito mais o facto de poder vir a morrer e não ter tentado tudo para me salvar.” Susana fala da experiência com uma pontinha de orgulho por estar a contribuir para um trabalho de alcance tão vasto.
Sem testar em doentes, os conhecimentos adquiridos em laboratório e nas primeiras fases da investigação, dificilmente se chegaria à descoberta de novos medicamentos e à cura das doenças. Por norma, estes ensaios clínicos demoram muito tempo e são duplamente cegos, isto é, os doentes desconhecem se estão ou não a receber a nova terapêutica.
Falta estratégia nacional
Os ensaios clínicos têm vindo a aumentar todos os anos em Portugal, mas os números poderiam ser melhores. Em 2018, o Infarmed (Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde) recebeu 159 pedidos, tendo autorizado 141, mais 16% face ao ano anterior. Terão participado entre 2300 e 2500 doentes. O IPO do Porto, um dos mais avançados nesta matéria, iniciou 32 ensaios em 2017, e 15 no ano passado. Apesar de as estimativas para 2019 serem mais otimistas, a verdade é que Portugal continua aquém de países com uma dimensão idêntica, como a Bélgica (ver gráfico).
Médicos e cientistas ligados à investigação são unânimes — Portugal tem recursos humanos e técnicos comparáveis aos países mais desenvolvidos e não sai da cauda da Europa por questões de organização e de relação entre serviços e ministérios. Carla Oliveira, investigadora especialista em cancro gástrico do Ipatimup — I3S, e membro da Comissão Executiva da Sociedade Europeia de Genética Humana, dá-nos uma visão privilegiada do estado da investigação oncológica: “Hoje, ao contrário do que acontecia nos anos 90, temos em Portugal laboratórios com as mesmas condições que encontramos lá fora. Não há falta de pessoas a querer estudar o cancro. Fazemos ciência de boa qualidade. O que falta é uma estratégia nacional que permita aos investigadores dedicarem-se em pleno ao seu trabalho e manterem-se competitivos na investigação.”
Oncologista no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, professor na Faculdade de Medicina de Lisboa e presidente da Associação Portuguesa Investigação do cancro (ASPIC), Luís Costa concorda que “esta nova geração de médicos e cientistas, está mais preparada” e poderia elevar o nível de investigação para outros patamares, se não fosse travada por problemas administrativos. E dá o exemplo da falta de reconhecimento oficial de algumas profissões que, na área clínica, são hoje fundamentais à investigação: “Devemos saber que esta é a melhor forma que nós temos, enquanto sociedade, de fazer avançar a ciência.”
José Dinis, o recém-nomeado diretor do Programa Nacional de Doenças Oncológicas e responsável pela Unidade de Investigação Clínica do IPO do Porto, aponta também a falta de estruturas e de autonomia das organizações para que possam gerir de forma própria os projetos e as verbas que captam da indústria farmacêutica. “Há ensaios clínicos aos quais não podemos nos candidatar porque sabemos que não vamos conseguir responder. Alocar recursos aos projetos pode demorar muito tempo.” A contratação de pessoal, incluindo médicos que possam dedicar mais tempo ao acompanhamento dos ensaios, está dependente do Ministério da Saúde. “Há centros que gostariam de fazer investigação clínica, mas não o fazem por falta de equipa”, acrescenta Luís Costa.
Na opinião de Júlio Oliveira, médico oncologista no IPO do Porto, a questão da investigação e dos ensaios clínicos é fundamental: “É um trabalho em que todos devem estar envolvidos, dos médicos às associações de doentes.” E defende que “Portugal devia ter a capacidade de fazer investigação sem que esta coincida com os interesses de empresas privadas internacionais”. A realidade, porém, é diferente: cerca de 90% dos ensaios clínicos feitos no país destinam-se a testar novos produtos da indústria farmacêutica; apenas 10% são académicos.
Os exemplos de Espanha e do Reino Unido
Entre a investigação básica (aquela que se faz nos laboratórios) e a investigação clínica (aquela que se faz nos hospitais) existe a investigação de translação, etapa que igualmente precisa de novas estruturas e meios. “A investigação de translação é a tentativa de transformar o conhecimento adquirido na investigação básica para a aplicação clínica”, refere Fátima Carneiro, diretora do serviço de Anatomia Patológica do Hospital de São João. A patologista realça a seguir o facto de, na investigação de translação, Portugal ser líder, sobretudo, ao nível do carcinoma da próstata e cancro de estômago. Temos “talento ao nível da investigação do cancro”, mas precisamos de “melhorar as infraestruturas e as interligações entre as mesmas”.
José Dinis toca em outro ponto: “A indústria vê-nos como sendo ibéricos.” E, por isso, coloca os hospitais portugueses a competir em pé de igualdade com os hospitais espanhóis. “Mas, como o nível de organização deles é muito superior, Portugal fica para trás.” O plano que Espanha implementou em 2005 e 2006 é, reconhece, “um dos maiores sucessos a nível europeu nesta área”. O caso de Inglaterra serve também de exemplo. “Em 2006 os ingleses estavam iguais a nós no que diz respeito à investigação clínica”, recorda José Dinis: “Eles perceberam que a investigação é uma forma de alavancar a participação dos doentes e o próprio sistema nacional de saúde. Nós devíamos fazer o mesmo.”
Em 2017, os ensaios clínicos contribuíram em €1400 milhões para o sistema de saúde inglês. Em Espanha, as receitas provenientes e canalizadas para o sector público totalizaram €1100 milhões. Ou seja, os ensaios podem ser importantes fontes de receitas. Segundo o último estudo da Apifarma (Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica), desenvolvido com a consultora PwC, cada euro investido em ensaios clínicos gera um retorno de €1,99 na economia. Sugere Júlio Oliveira: “A atividade de ensaios clínicos podia até ser coordenada pelos Ministério da Economia. Apresenta grandes benefícios para o país e pode atrair investimento.”
Textos originalmente publicados no Expresso de 20 de julho de 2019
22 julho 2019
-
Cancro da cabeça e pescoço: mais de metade dos casos continuam a ser diagnosticados tarde
Em Portugal, todos os anos, milhares de pessoas recebem tarde demais o diagnóstico de cancro da cabeça e pescoço - mais de metade dos casos só são detetados em fases avançadas. A campanha internacional Make Sense regressa em setembro para lembrar que reconhecer os sintomas e agir cedo pode fazer toda a diferença.18.09.2025 às 17h24
- 1:46
IPO do Porto realizou dezenas de rastreios aos cancros da cabeça e pescoço
Por ano, em Portugal, são diagnosticados à volta de 2.500 casos. Aos hospitais, chegam, sobretudo, doentes com cancro avançado, o que limita muito a sobrevivência e a qualidade de vida.
16.09.2025 às 15h03
-
Carina Ferreira Borges: “O álcool é responsável por sete tipos de cancro, é tão cancerígeno como o tabaco”
Recentemente, os vernizes de gel com substância TPO foram proibidos na União Europeia por conterem substâncias possivelmente cancerígenas. Mas e se lhe disséssemos que o álcool pode causar mais de 7 tipos de cancro e até mesmo doença do coração? “Não existe tal coisa como beber com moderação ou com responsabilidade, todo o consumo de álcool é nocivo”, explica a doutora Carina Ferreira Borges. Talvez um brinde à saúde seja um brinde sem álcool, ouça as recomendações da especialista no novo episódio de ‘Consulta Aberta’15.09.2025 às 8h00
-
Portugal junta-se a projeto europeu para travar cancro do ovário
O cancro do ovário continua a ser um dos maiores desafios da saúde feminina: chega quase sempre tarde, quando os sintomas já se confundem com outras doenças, e o tratamento torna-se limitado. É por isso que lhe chamam o “assassino silencioso”.10.09.2025 às 10h44
-
Nasce nova plataforma que quer promover o crescimento da investigação clínica nacional
A Agência de Investigação Clínica e Inovação Biomédica apresenta a Portugal Clinical Studies, uma nova plataforma que visa simplificar e agilizar os processos inerentes aos estudos clínicos nacionais.03.09.2025 às 12h23
-
Combater o cancro: cientistas descobrem novas formas de reprogramar células
“Novo conhecimento pode aproximar-nos de imunoterapias mais eficazes, contribuindo para reduzir a probabilidade de falha terapêutica e acelerar o desenvolvimento de novas estratégias contra o cancro.”02.09.2025 às 14h13
E Depois