João Lopes

Comentador SIC Notícias

Cultura

“Amarcord” ou o cinema que já não existe

O clássico de Federico Fellini surgiu nas salas de cinema há meio século: a sua riquíssima herança é, de uma só vez, artística e comercial.

Filmagens de "Amarcord": uma certa ideia, italiana e europeia, do que seja o grande espectáculo.
Filmagens de "Amarcord": uma certa ideia, italiana e europeia, do que seja o grande espectáculo.

O filme "Amarcord", de Federico Fellini, teve a sua estreia no dia 18 de dezembro de 1973. É caso para perguntar: 50 anos depois, que resta (ou não resta) desse objecto que, além do mais, ficou como uma viagem confessional do próprio realizador, evocando as memórias da sua juventude na região de Rimini?

Já não temos Fellini, como bem sabemos, que viria a falecer vinte anos mais tarde, a 31 de outubro de 1993, contava 73 anos. Mas também já não temos o cinema que ele representava. Que cinema era esse? "Cinema de autor", dir-se-á, uma vez que nele reconhecemos a capacidade de transformar qualquer auto-retrato num epopeia partilhável com os outros — através do grande ecrã, precisamente.

Mas a questão "autoral" está longe de ser suficiente para compreendermos o que era o panorama do cinema italiano (e, em boa verdade, do cinema europeu) nesse ano de 1973 marcado por alguns títulos emblemáticos — lembremos apenas que, em paralelo, surgiam "A Grande Farra", de Marco Ferreri (também em Itália), "A Noite Americana", de François Truffaut (França) ou "O Espírito da Colmeia", de Víctor Erice (Espanha). Sem esquecer, convém acrescentar, que ninguém pretende sugerir que o cinema actual carece de talentos.

Acontece que Fellini encarnava uma ideia de criador em que as condições concretas de produção se combinavam com uma dimensão pessoal de crescente intensidade e sofisticação. Assim, por um lado, ele fazia filmes que se distinguiam pela sua grandiosidade industrial, em muitos aspectos maiores e mais ousados que muitas experiências dos nossos dias; ao mesmo tempo, por outro lado, o seu cinema tinha qualquer coisa de pessoalíssimo bloco-notas em nada parecido com certas formas de identificação e promoção de alguns "artistas-vedetas" do século XXI.

O mínimo que se pode dizer é que é pena que falte alguma imaginação (e, sobretudo, ousadia comercial…) a um certo cinema europeu que investe tão pouco na celebração do seu património. A monumentalidade e o sentido de espectáculo de "Amarcord" seria, por exemplo, devidamente rentabilizada numa das actuais salas IMAX. Parece uma utopia? Talvez, mas em última instância depende apenas de algumas mudanças nos conceitos dominantes de comercialização dos filmes.