João Rosado

Comentador SIC Notícias

Desporto

Opinião

Superliga, o mais depressa possível

Opinião de João Rosado. Mas não é a europeia. Vai ter de ser a universal, para aproveitar a gigantesca dimensão mediática de clubes que só ocasionalmente podem discutir com os melhores
Aleksander Ceferin, presidente da UEFA
Aleksander Ceferin, presidente da UEFA
Daniel Cole

Só por causa do título do livro, também devia ter sido feriado na Croácia.

A 5 de outubro, enquanto nas esplanadas portuguesas se comemorava a implantação da República, no Esplanade de Zagreb o Dr. Peter Ceferin fazia a promoção de uma das suas obras mais conhecidas. Com a sala que o hotel reservou para o efeito a mostrar-se demasiado acanhada, o respeitado advogado destacou alguns excertos do “Sudnji dani” e dividiu as atenções com o filho Aleksander e com o herói nacional Zvonimir Boban.

Noutro tempo, outra cara sobejamente familiar iria compor o ramalhete. Andrea Agnelli, o compadre de Aleksander, estaria, quase de certeza, sentado na fila da frente.

Andrea Agnelli, antigo presidente da Juventus
Jean Catuffe

O presidente da UEFA é padrinho de uma das filhas do antigo presidente da Juventus mas o apocalipse (“Sudnji dani”) levantado com a ideia da Superliga europeia derreteu em abril de 2021 as alianças forjadas dentro e fora da Igreja.

A cumprir uma suspensão de 10 meses por irregularidades financeiras cometidas enquanto máximo dirigente da Juve, Agnelli, por sinal, tem sido uma das figuras que ainda não julgou prudente nenhuma espécie de comentário sobre a decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) que agitou o mundo do desporto a “pedido” de várias famílias.

Na última quinta-feira, ao considerar “ilegais” as normas da UEFA e da FIFA que contemplam sanções para os clubes e jogadores que participem de “provas como a Superliga”, a nota emanada do TJUE reabriu as páginas mais negras dos mandatos de Ceferin e voltou a fazer tremer os alicerces do poder instalado em Nyon e em Zurique.

DA A22 ATÉ AO RUANDA

Assim que estas duas instituições reguladoras do desporto-rei foram acusadas de “abuso de poder”, o presidente-executivo da A22 Sports Management (empresa promotora da Superliga) tratou de anunciar um novo modelo para uma prova com participação condicionada ao mérito desportivo e com base no rendimento evidenciado nos campeonatos de cada país.

Pelo menos foi essa a promessa feita por Bernd Reichart, que acenou com um mínimo de 14 jogos por ano e com um sistema de subidas e descidas num universo de três divisões para o setor masculino. De acordo com a explicação publicitada pelo responsável germânico, um total de 64 emblemas poderá no primeiro ano ser selecionado em função de um “conjunto de critérios” com base também no rendimento dentro de campo, o que significa que esta proposta duplica, logo à cabeça, o número de inscrições que a FIFA estipulou para o Mundial de clubes de 2025.

Bernd Reichart, presidente-executivo da A22 Sports Management, empresa promotora da Superliga europeia
SUSANA VERA

Em jeito de antecipação, no congresso que em março deste ano levou os delegados para o longínquo Ruanda, os fiéis de Gianni Infantino aprovaram não apenas 32 nomes para o Mundial de equipas que vai arrancar nos Estados Unidos como fizeram nascer uma nova prova no mapa-múndi, anunciando já para 2024 uma Taça das Confederações que vai opor o vencedor da Liga dos Campeões ao vencedor de um play-off a ser disputado pelos vencedores das restantes competições continentais.

Contrariando aquilo que têm sido os apelos dos treinadores para a salvaguarda da condição física das estrelas, tanto Infantino como Ceferin não hesitaram em sobrecarregar o calendário, em nome de um aumento da oferta televisiva e da consequente subida do “prize money” para os maratonistas.

QUEM CARLO NÃO CONSENTE

Um Mundial com 48 seleções, uma Liga dos Campeões com 36 inscritos, já sem contar com as várias Ligas das Nações, tudo isso representa uma visão para o futuro que não respeita os pedidos feitos por técnicos venerados em todas as latitudes.

Xavi Hernández chegou ao ponto de sugerir que os clubes tivessem os atletas durante nove meses e depois houvesse um período demarcado para compromissos das seleções, enquanto Pep Guardiola confessou que nem sequer consegue fazer um verdadeiro treino sob pena de entregar os nomes todos ao departamento clínico.

Carlo Ancelotti, que foi campeão em Inglaterra, Espanha, Alemanha, Itália e França (ou seja, “só” nos cinco principais campeonatos do planeta), há muito tempo que qualificou o panorama como “insustentável” e no mesmo contexto até formulou críticas severas ao próprio Sindicato dos Jogadores, acusando-o de ser cúmplice pelo silêncio de um processo gradualmente destrutivo da alta performance.

Carlo Ancelotti, treinador do Real Madrid
VINCENT WEST

Um pouco à semelhança do que fez o presidente do Nápoles e obviamente o presidente do Real Madrid, Don Carlo reagiu com agrado (“vai ser positivo para todos que não haja um monopólio e se vejam formas de melhorar o calendário”) à decisão do Tribunal de Justiça Europeia e parece disposto em estudar com muita atenção as rotas diferentes demarcadas pela A22.

E, no fundo, trata-se apenas disso, de um caminho alternativo.

O que o futebol vai exigir no futuro, supera todas estas realidades ou ficções. Acima de qualquer Liga ou Superliga europeia, o que vai ser necessário implantar é uma Liga de cariz universal. E simultaneamente, abdicar das tais provas que desafiam os limites dos craques.

Marcas centenárias e com milhões de adeptos não podem ficar resumidas à singela possibilidade de uma vez por outra arriscarem a sorte numa final mundial com o vencedor da Liga dos Campeões. Palmeiras, Flamengo, Corinthians, Fluminense, Boca Juniors ou River Plate são exemplos flagrantes desta total incoerência e deste incompreensível desperdício mediático.

Abel Ferreira, treinador do Palmeiras
Ricardo Moreira

APOCALIPSE NOW?

O mesmo se aplica aos gigantes mexicanos, norte-americanos, africanos e... orientais, não sendo por acaso que se intensificam as notícias sobre a introdução de um “wild card” na Champions para permitir a intromissão do campeão... saudita.

E já quase me esquecia dos gigantes portugueses. Com a formação de excelência que qualquer um deles ostenta, também Sporting, Benfica e FC Porto teriam muito a ganhar com a Liga universal, sobretudo se certas regras fossem acauteladas.

Qualquer dia, valerá a pena regressar a este tema. Até para se perceber melhor o quão equivocado está Pedro Proença quando no âmbito da reação à decisão do TJUE escreveu que o futebol “não está à venda”.

A Arábia Saudita contrata a seu bel-prazer no Mundo. A Arábia Saudita organiza as Supertaças de Espanha e de Itália (qualquer dia a nossa Taça da Liga?) e foi soberana na candidatura ao Mundial de 2034. A Arábia Saudita adquiriu o Newcastle e acabou por impedir que os míticos emblemas (como o Liverpool) da Premier League caíssem esmagadoramente nos bolsos norte-americanos.

Sir Jim Ratcliffe acabou de comprar 25 por cento à família Glazer e depois do Nice concretizou o réve de infância no United à custa de 1,4 mil milhões de euros. Os grupos City e Red Bull espalham os seus tentáculos financeiros um pouco por todo o lado e o PSG é literalmente um emirado à parte na Liga francesa.

Proença só podia estar certo no caso de o futebol já ter vendido tudo o que tinha para vender. Se isso é mesmo verdade, tenho de ir a um Esplanade ler de fio a pavio o “Sudnji dani”. Entre o Natal e o 5 de outubro, sobrará uma cadeira livre para isso.