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Crescer em pandemia: "Era bem difícil perceber o que a professora estava a tentar explicar”

O confinamento durante a pandemia atingiu fortemente o ensino em Portugal. As aulas foram dadas por videochamadas e através da telescola. Nuno Cruz tinha 6 anos quando viu a sua casa transformar-se numa sala de aula. A aprendizagem foi “difícil” e, três anos depois, ainda enfrenta alguns desafios.

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Três anos depois do primeiro caso de covid-19 ser confirmado em Portugal, a SIC Notícias ouviu o relato de como crianças e jovens viveram o confinamento. Esta é a primeira de três histórias. Conheça também as histórias de Jonas Cruz e de Joana Rogado.

Nuno Cruz estava no primeiro ano da escola quando a pandemia o fez ficar fechado em casa - e a sentir-se “enjaulado”. Passou das aulas presenciais para um regime online, que incluía aulas na televisão e uma videochamada com a professora por semana. A alteração forçada do regime de ensino poderá ter atrasado algumas das aprendizagens características da idade.

“Havia coisas que não percebia. Era bem difícil perceber o que a professora estava a tentar explicar”. “As minhas dificuldades são escrever. Ler e nos números já estou bem. Gosto mais de Matemática do que Português. Na minha escola sou o rei das tabuadas”, conta à SIC Notícias.

Segundo dados do Pordata, no ano letivo de 2019/2020 havia 386.583 alunos inscritos no 1.º ciclo do ensino básico. No primeiro ano de escolaridade, as crianças começam a ter contacto com a escrita e as contas, com a junção das letras e a leitura, as somas e as subtrações dos números.

Depois dos primeiros casos de covid-19, o Governo decretou confinamento. As escolas fecharam portas e os alunos passaram a ter de aprender a matéria à distância - fosse através do computador, fosse através do “Estudo em Casa”.

O quarto e a sala de Nuno Cruz transformaram-se numa sala de aula
Filipa Traqueia

Além da batalha que travava para aprender a escrita e a leitura, Nuno Cruz também demorou a conseguir dizer corretamente algumas letras - nomeadamente os F e os V. Estas dificuldades foram um sinal de alarme para os pais que, depois do confinamento, o levaram a consultas de terapia da fala. O objetivo era despistar uma possível situação de dislexia - que acabou por não ser diagnosticada.

Os resultados das provas de aferição, realizadas em 2022 - as primeiras desde a pandemia a serem realizadas fora do regime amostral -, revelaram que as crianças do segundo ano tinham uma maior dificuldade no domínio da oralidade: apenas 41,1% dos alunos conseguiu responder às questões na totalidade ou com poucas dificuldades.

Em 2019 - os últimos dados antes da pandemia - a percentagem de crianças a conseguir responder ultrapassava os 83%. Também na área dos jogos infantis (educação física) houve uma diminuição de 16,5% na percentagem de alunos que conseguiram realizá-los sem dificuldade.

No caso de Nuno, os dois confinamentos - de março de 2020 e de fevereiro de 2021 - coincidiram com os primeiros dois anos da escolaridade. Para a mãe, Irina Ribeiro da Cruz, a interrupção forçada das aulas presenciais criou “um buraco enorme” na aprendizagem das crianças. “É uma fase fulcral para eles aprenderem em contacto com a professora”, sublinha, acrescentando que “não quer dizer que não venha a recuperar, [o Nuno] já recuperou bastante”.

“A infância e a adolescência não se recuperam. Há muito desenvolvimento cognitivo que não aconteceu nesta altura”, prossegue Irina. “O maior impacto ainda está para vir nos anos futuros, ainda se vai refletir daqui a uns anos em termos de saúde mental.”

Ter aulas no computador e na televisão

Nuno lembra-se do dia em que a professora pediu para desenhar o museu de Cascais, de não ter conseguido acabar o trabalho e de ver os amigos a desligarem as câmaras para não mostrarem o resultado à professora.

“Eu vi alguns colegas a taparem a câmara. Eu acho que o esquema era para não fazer os trabalhos”.

Os professores expunham a matéria e projetavam as apresentações, num esforço herculano para evitar que as crianças fossem prejudicadas. Sempre que tinham dúvidas, os alunos podiam acionar o “emoji” da mão no ar - tal como se estivessem na sala de aula. Mas o ambiente era muito diferente.

“Funcionava assim: toda a gente estava com a câmara ligada e com o som fechado [desligado]. Depois, quem colocasse a mãozinha (um emoji da mão) a professora dizia que era como levantar o dedo, mas quando a professora está a partilhar alguma coisa e não está a ver o outro ecrã nós podemos colocar o som e falar”, explica.

O computador era a forma de aprender e também de jogar com os amigos.
Pedro Rebelo Pereira

Além das aulas online, as crianças tinham também de assistir às lições do “Estudo Em Casa”, que era emitido diariamente na televisão. A memória de Nuno já começa a esvair-se. Já não se recorda das aulas na televisão, mas a mãe garante que fizeram parte da vida do filho mais novo durante os dois confinamentos.

“O plano da escola incluía a telescola. Apesar de ser na televisão, eles tinham de fazer o que os professores diziam e o Nuno não queria fazer. Era um castigo de manhã, começava muito cedo”, lembra Irina Ribeiro da Cruz.

As aulas do primeiro ano eram logo as primeiras da manhã, arrancavam às 9:00. Estudo do Meio e Cidadania, à segunda e quarta-feira, Português, à terça e quinta-feira, e Matemática à sexta-feira.

Irina Ribeiro da Cruz considera que “os pais não estavam preparados” para assumir o papel de docentes e que “houve resistência”. Apesar das adversidades, deixa rasgados elogios aos professores que deram a cara na televisão para fazer chegar a matéria às crianças: “Foram excecionais. Fizeram um excelente trabalho e em tempo recorde”.

A falta do campo e as brincadeiras ao computador

O regresso às aulas presenciais foi complicado para Nuno, mas, agora, garante que gosta mais de ir à escola do que estudar em casa. “É mais divertido. Vais à escola, tens duas ou três horas para brincar e é bué divertido mesmo”, conta.

No primeiro dia de aulas, depois do confinamento, Nuno não queria regressar à escola, contudo, este regresso acabou por ser mais positivo do que esperava.

“Eu chorei porque não queria ir para a escola. Depois limpei as lágrimas, fui para a sala do terceiro ano e encontrei uma nova amiga que se chama Constança.”

Uma das coisas que Nuno Cruz sentiu mais falta foi de jogar futebol na escola.
Filipa Traqueia

Durante o confinamento, Nuno sentiu “falta de brincar” com os amigos. “Quando acabávamos a aula, íamos para o email e para meets [salas de conversa online] e conversávamos”, lembra. Trocava mensagens com os colegas, via vídeos do Youtube e, por vezes, os pais deixavam-no ir ao outro computador, onde podia jogar Minecraft. Quando passava muito tempo em jogos online, os pais notavam que a criança ficava mais irritada e de mau humor.

“Faltava muitas coisas: o campo de futebol, o espaço todo. Em vez de estarmos agarrados a jogar, viciados… Eu gosto mais da escola como ela é. Também gosto das aulas, mas a parte que eu mais gosto é o campo, é bem lisinho, gosto de jogar futebol.”