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Crescer em pandemia: "Tínhamos um cantinho na garagem onde fomos treinando"

O desporto faz parte da vida de cerca de metade dos jovens portugueses. Jonas Cruz é um dos atletas federados que se viu obrigado a interromper os treinos devido ao confinamento. Lutou para não perder a motivação e, em conjunto com o pai, transformou a garagem num mini-dojo.

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Três anos depois do primeiro caso de covid-19 ser confirmado em Portugal, a SIC Notícias recolheu histórias de crianças e jovens que foram afetados pelo confinamento e pela pandemia. Este é o segundo de três vídeos da série. Conheça também as histórias de Nuno Cruz e de Joana Rogado.

Jonas Cruz tem 19 anos, é judoca federado e está a estudar fisioterapia, na Escola Superior de Saúde da Cruz Vermelha. Quando foi confirmado o primeiro caso de covid-19 em Portugal tinha 16 anos e preparava-se para uma série de competições e torneios. Contudo, o confinamento, que chegou cerca de duas semanas depois, interrompeu, durante meses, a prática desportiva de milhares de crianças e jovens.

De um dia para o outro, os treinos pararam. Cerca de 47% dos jovens que frequentam os 2.º e 3.º ciclos do ensino básico praticam desportos organizados, de acordo com dados da Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência. Jonas é judoca desde os seis anos e considera que a pandemia “influenciou bastante” a performance, principalmente “na vontade" que tinha para treinar.

Perante uma paragem abrupta das modalidades, e com o objetivo de evitar que os atletas de competição estivessem muito tempo sem atividade física, os clubes iniciaram um regime de treinos online. Num desporto de contacto, como o judo, acompanhar os exercícios à distância foi “complicado”.

“Era sempre por zoom: entrávamos numa videochamada e fazíamos o que nos diziam. Os treinadores tinham os cronómetros e fazíamos exercícios simples, só com o peso do corpo. Não passava muito disso”, lembra Jonas.

Judocas do Sport Algés e Dafundo preparam-se para a saudação inicial.
Filipa Traqueia

Ao contrário dos colegas, o jovem teve a “sorte” de poder treinar com o pai, João Cruz, que também é praticante da modalidade. A família transformou uma parte da garagem num mini-dojo, onde pai e filho treinavam diariamente.

“Tivemos a oportunidade de nos emprestarem os tapetes - os tatamis - e tínhamos um cantinho na garagem onde fomos treinando. Ao início, fiz só treinos com o meu pai. Os dois seguíamos os planos que fazíamos”, conta Jonas.

João Cruz reconhece ter sido uma vantagem os dois praticarem a mesma modalidade. Afirma ainda que o treino em conjunto serviu de “motivação” para o jovem atleta.

“Apoiámo-nos um ao outro. Fazíamos o mínimo para o Jonas não perder a forma e a motivação. A motivação até aumentou, uma vez que a privação deu-lhe mais vontade de treinar”, conta, reconhecendo que nem todos os jovens atletas tiveram a mesma possibilidade.

Os treinos diários da família Cruz acabaram por se tornar uma vantagem para Jonas: apesar de ter estado limitado pelo confinamento, o tempo livre permitiu-lhe treinar mais do que antes.

“Por um lado afetou [a minha performance] porque estávamos limitados só às coisas que podíamos fazer. Mas, se calhar, na parte física até melhorou porque, como não tínhamos tantas coisas para fazer, dedicava mais tempo [ao judo]. Fazia dois treinos por dia, às vezes mais, e dava mais de mim ao desporto”, lembra.

O regresso aos treinos e as novas regras

Jonas chega com muita antecedência ao Sport Algés e Dafundo para o treino de judo. Equipa-se e espera que a aula dos mais novos termine. No campo ao lado do dojo está a decorrer um treino de basquetebol. Entra finalmente na sala. A fita negra, a mais alta graduação das artes marciais, contrasta com o branco do kimono. Nas costas está o seu nome e a referência ao país: “JONAS CRUZ - POR”.

Os treinos começam sempre com a saudação: todos os atletas se organizam numa linha, por ordem de graduação, para o momento. Os treinadores indicam, depois, os exercícios de aquecimento e os atletas começam a correr à volta do dojo. Ao fundo da sala ainda se veem sinais das cheias que atingiram fortemente a zona de Algés, em dezembro de 2022.

Durante o primeiro confinamento, toda a atividade desportiva no Sport Algés e Dafundo foi interrompida. Só em abril de 2020, a Federação Portuguesa de Judo divulgou as regras para a retoma da atividade desportiva. Os clubes passaram a ter de limitar o número de judocas no dojo, de evitar o contacto entre os atletas, de higienizar todos os materiais utilizados, entre outras regras.

O espaço de treino passou a estar marcado com pequenos quadrados, de dois metros de comprimento por dois de largura. Os treinos eram feitos de forma individual e sem contacto. Pedro Jacinto, treinador no Sport Algés e Dafundo, considera que o distanciamento imposto privou os atletas da “essência do judo”.

“Não tínhamos contacto, tínhamos de simular tudo”, lembra.

Jonas Cruz treina judo desde os seis anos.
Filipa Traqueia

Numa primeira fase, apenas atletas de “alto rendimento” receberam autorização para treinar durante o estado de emergência. “Quem não estava na seleção, fazia o treino online. Queríamos manter o grupo unido e a ligação entre os atletas”, acrescenta o treinador.

Jonas integrou o estágio da seleção nacional durante o segundo confinamento - no inverno de 2021. O regresso, embora muito esperado, foi “estranho”: “Éramos muito menos, o tapete parecia vazio. Às vezes éramos cinco ou oito num treino, tínhamos de fazer uns com os outros, rodar sempre entre nós.”

Jonas recorda que não tinha de usar máscara durante os treinos, mas sabe de colegas que eram obrigados a fazê-lo. Durante as competições, a máscara só podia ser retirada “mesmo antes de entrar para o combate”. “Tínhamos uma data de regras, desde onde deixávamos as nossas coisas, a desinfeção, tínhamos de passar pelos procedimentos todos.”

Além dos desafios dos treinos em casa, a motivação era também posta à prova para os atletas de “alto rendimento”. As competições eram adiadas ou canceladas uma atrás da outra. O treinador destaca a “resiliência” dos que, apesar das diversidades, continuaram a treinar e acrescenta que muitos acabaram por desistir.

“No início quase que mentíamos aos atletas, treinávamos para as provas que eram sempre adiadas”, conta Pedro Jacinto. “Treinávamos sem motivação. Havia atletas com ambições para disputar os campeonatos europeu e mundial e, em 2020, não se realizou. Viram o seu trabalho desperdiçado.”

Os calendários de 2020, disponibilizados pela Federação Portuguesa de Judo, ainda mostram os efeitos da pandemia: vários torneios e competições riscados por terem sido cancelados ou adiados devido à covid-19. As medidas afetaram os quase 13 mil judocas federados em Portugal.

Quando as competições retomaram, os testes à covid-19 (PCR e autotestes) tornaram-se uma prática constante para os atletas. Sempre que tinham estágios ou iam competir, Jonas e os restantes judocas eram testados - às vezes diariamente. O receio de apanhar covid-19 era cada vez maior.

“Nós tínhamos sempre receio que se apanhássemos covid-19 não podíamos ir a uma prova que estivesse próxima ou aos treinos. E, mesmo em casa, treinar com covid-19 também não é bom.”

O impacto na escola e nas amizades

Jonas viu, como os cerca de dois milhões de jovens em idade escolar, a escola a fechar portas. O ensino à distância foi “muito difícil” para o jovem, principalmente ao nível da concentração.

“É muito difícil, para mim, manter a atenção como se estivesse numa sala de aula. Porque estava no computador, com muito pouco barulho, não se passava quase nada e era complicado manter a atenção. Eu tentava o que conseguia, mas havia sempre aquela barreira para o professor nos passar a matéria como queria”, lembra.

A matéria era lecionada de uma forma mais lenta, porque os próprios alunos também “aprendiam mais devagarinho”. “Acabávamos por ter aulas em que era só rever matéria de duas ou três aulas. No final do ano tínhamos ainda muito para dar.”

Jonas Cruz prepara-se para fazer os exercícios do treino.
Filipa Traqueia

Além da aprendizagem, também as relações pessoais foram afetadas. As tecnologias ganharam um papel ainda mais importante na vida dos jovens, uma vez que era a única forma de se conectarem com os amigos.

“Ficávamos a falar uns com os outros por videochamada, às vezes só por chamada. Ficávamos a jogar ou só na conversa”, conta Jonas, sublinhado que a pandemia e os casos positivos nas famílias eram os temas que dominavam os diálogos.

Três anos passaram desde o primeiro caso de covid-19 em Portugal. Os atletas já voltaram aos treinos e às competições. As máscaras já não entram no dojo. Nas escolas, também as aulas presenciais são, novamente, a norma. Mas, destes tempos passados em casa, há experiências que ficaram por acontecer e planos por concretizar.

“As experiências que eu podia ter, as saídas com os meus amigos, os passeios com a minha família… Muitos não pudemos fazer”, afirma Jonas Cruz. “Essas experiências e memórias que poderia ter na minha fase de adolescência, acabei por não as ter. Talvez um dia ainda as vá fazer.”