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Surtos de sarampo afetam milhares de crianças na República Democrática do Congo

Quando se fala de uma emergência na República Democrática do Congo, o problema do sarampo é muito raramente a primeira imagem em que se pensa. Porém, a doença continua a causar regularmente grandes danos nas crianças mais novas e é desde há anos a primeira razão para a ação das equipas de emergência da Médicos Sem Fronteiras no país.

Surtos de sarampo afetam milhares de crianças na República Democrática do Congo
Pacom Bagula

A cada dois ou três anos, surtos de sarampo afetam dezenas ou mesmo centenas de milhares de crianças na República Democrática do Congo. O ano passado não foi exceção, com mais de 148.600 casos reportados e 1.800 mortes. Como explicar esta emergência recorrente? E, acima de tudo, como pôr-lhe fim?

Quando se fala de uma emergência na República Democrática do Congo (RDC), o problema do sarampo é muito raramente a primeira imagem em que se pensa. Porém, esta doença causa regularmente grandes danos para as crianças mais novas – as principais vítimas do sarampo – e é desde há anos a primeira razão para a ação das equipas de emergência da Médicos Sem Fronteiras (MSF) no país.

“Temos cinco equipas de emergência mobilizadas praticamente durante todo o ano para dar resposta aos vários surtos de sarampo que surgem no país. Mas assim que apagamos um fogo num local, logo outro aparece noutro sítio”, descreve o médico Louis Massing, responsável clínico da MSF na RDC. “Em 2022, tivemos 45 respostas de emergência relacionadas com sarampo. Isto é mais de três quartos da nossa resposta de emergência na RDC.”

O maior surto de sarampo jamais documentado no país ocorreu entre 2018 e 2020. Naquela altura, quase 460.000 crianças contraíram a doença e 8.000 delas morreram. Foram organizadas campanhas de vacinação de larga escala pelas autoridades de saúde, com o apoio de parceiros internacionais como a MSF, o que permitiu reduzir o número de casos de forma muito significativa em 2021.

“Mas no ano passado, perto de metade das zonas de saúde no país estavam de novo numa situação epidémica”, lamenta Louis Massing. “E ainda não acabou. Só em janeiro de 2023, quase 20 000 casos suspeitos de sarampo foram notificados na RDC e as nossas equipas já deram resposta a surtos de sarampo nas províncias de Tshopo, Maniema, Kivu Sul, Kivu Norte, Lomami e Lualaba”, destaca.

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(Vídeo - reportagem MSF/ edição Ana Isabel Pinto, SIC)

“Não pode haver elos fracos”

O sarampo é uma das mais contagiosas doenças no mundo. Felizmente, existe uma vacina que oferece proteção quase total quando uma pessoa é inoculada duas vezes. Como uma pessoa com o vírus pode contagiar até 90 por cento das pessoas não vacinadas que lhe estão próximas, garantir o máximo de cobertura vacinal é vital. Tal requer investimentos maciços em vacinação de rotina, em vigilância e em campanhas de atualização vacinal.

“A luta contra o sarampo é como uma corrente em redor do vírus: se um elo quebrar, o vírus consegue escapar-se”, avança o responsável médico da MSF na RDC. “Primeiro, o país tem de assegurar-se que estão disponíveis quantidades suficientes de vacinas para evitar quebras de stock nas instalações de saúde. Depois, é necessário garantir que as vacinas são entregues nas estruturas de saúde e que existe uma cadeia de frio eficaz para as manter armazenadas em boas condições. É também preciso ter equipas a postos nos locais para vacinar as crianças durante as consultas, e que as famílias tenham os meios económicos e físicos para ali se deslocarem. E, finalmente, têm de ser organizadas campanhas de atualização vacinal de forma a proteger as crianças que passam pelas malhas das redes... Dada a virulência do sarampo, não pode haver elos fracos”, sustenta ainda Louis Massing.

Muitos dos elementos daquela corrente são, porém, débeis na RDC – e esta situação é ainda mais agravada por restrições de segurança, por desafios geográficos que é preciso ultrapassar para chegar a muitas áreas, e pela elevada taxa de natalidade no país, que regista mais de dois milhões de bebés nascidos todos os anos, os quais têm de ser protegidos desta doença.

Assim, e mesmo com as campanhas de emergência feitas durante cada surto, a cobertura vacinal permanece insuficiente. Apesar de as estimativas acerca da cobertura variarem largamente de uma fonte para outra, as última feitas pela Unicef e pela Organização Mundial de Saúde indicam que, em 2021, apenas 55 por cento das crianças tinham recebido uma dose da vacina contra o sarampo. É recomendado um mínimo de cobertura vacinal de 95 por cento com duas doses para prevenir a propagação da doença.

“A algumas áreas só se consegue chegar de canoa, ou até apenas a pé”, conta o responsável de logística de uma das equipas de emergência da MSF na RDC, Alexis Mpesha. “Não é incomum que as nossas equipas sejam as únicas a alcançar certas aldeias, porque as autoridades locais de saúde não têm o equipamento, nem o combustível ou os recursos humanos para lá chegarem”, sublinha.

Para as famílias que desejam vacinar as crianças, a distância até um centro de saúde que esteja a funcionar, os custos do transporte e, por vezes, os preços das consultas, podem ser desanimadores. “Os cuidados são caros e os nossos recursos limitados. Algumas crianças morrem apenas porque as famílias não têm dinheiro para pagar o tratamento”, explica Anne Epalu, que vive na vila de Bangabola, onde a MSF ativou uma resposta a um surto de sarampo no ano passado.

Reforço da vacinação é urgentemente necessário

Em 2022, as equipas de emergência da MSF na RDC vacinaram mais de dois milhões de crianças em 14 províncias e trataram mais de 37 000 pacientes com sarampo. A organização médico-humanitária mobiliza apoios para o Ministério da Saúde destinados a organizar campanhas de vacinação e para montar unidades de tratamento, quando é reportado um rápido aumento de casos de sarampo numa área e a capacidade de resposta local é limitada ou o acesso difícil.

Além das ações de emergência levadas a cabo durante os surtos, a MSF providencia também apoio logístico a atividades de vacinação de rotina em estruturas de saúde em diversas províncias onde as equipas da organização médico-humanitária trabalham ao longo do ano.

Mas muitos mais esforços e investimentos são precisos por parte das autoridades de saúde e entidades parceiras de forma a aumentar a cobertura vacinal na RDC e pôr fim ao ciclo interminável de epidemias.

“Tem de se acelerar a concretização das atividades da segunda dose de vacinação de rotina contra o sarampo”, defende Louis Massing. “Esta abordagem foi adotada recentemente pelas autoridades e pode fazer uma enorme diferença. Disponibilizar atividades sistemáticas de atualização da vacinação durante as consultas pediátricas nas instalações de saúde pode também ajudar a aumentar de forma muito significativa a cobertura vacinal na RDC”, frisa o responsável médico da MSF na RDC.

Entretanto, e face à persistência dos surtos no país – que põem mais crianças em risco todos os dias –, é essencial organizar as campanhas maciças de atualização das vacinas que estão planeadas desde os finais de 2022, sem demoras e em todo o país.

“As nossas equipas permanecem empenhadas em continuar a dar resposta aos surtos de sarampo na RDC, em apoio às autoridades de saúde, com todas as melhores capacidades de que dispõem. Mas para o fazer, é crucial que estejam disponíveis vacinas de emergência suficientes no país”, sublinha Louis Massing.