São 16 os países que, no mundo, têm atualmente surtos declarados de cólera. Entre eles está a Etiópia, onde a Médicos Sem Fronteiras (MSF) lançou uma nova abordagem para enfrentar a doença.
Numa altura em que se regista enorme escassez global de vacinas orais contra a cólera – com a procura a exceder em quatro vezes a capacidade de produção nos últimos dois anos –, há uma necessidade urgente de que os países afetados adaptem as abordagens existentes para dar resposta aos surtos.
Em colaboração com o Ministério da Saúde etíope, a Médicos Sem Fronteiras está a instaurar uma estratégia inovadora designada Ação Direcionada à Área do Caso (CATI, na sigla em inglês) para enfrentar um surto de cólera em Jigjiga, a capital da região de Somali, na Etiópia. Este surto foi declarado em outubro de 2023 e afeta a população em toda a cidade e zonas circundantes.
“Durante surtos de cólera, as pessoas que vivem num raio de 200 metros da casa de um paciente infetado são geralmente as que estão em maior risco de também ser infetadas, e toda essa área pode tornar-se num foco de contágio. É por isso que estamos a levar a cabo a CATI em colaboração com o Gabinete Regional de Saúde na região de Somali”.
A explicação é do epidemiologista Daniel Gudina, que integra as equipas da MSF na Etiópia.
Quando é reportado um caso de cólera: uma nova abordagem
A MSF recebe todos os dias uma lista das pessoas diagnosticadas com cólera, emitida pelo Gabinete Regional de Saúde. E após identificar onde os pacientes vivem, uma equipa dedicada vai até esses locais e borrifa desinfetante nas dez residências vizinhas mais próximas da casa do paciente.
As pessoas que vivem nessas dez casas recebem também uma dose única da vacina oral contra a cólera e um antibiótico (Doxycycline), e são-lhes fornecidos ainda kits de higiene que contêm artigos como garrafões e bidões, baldes para água, sabão e químicos para o tratamento de água. Adicionalmente a equipa da CATI faz atividades de promoção de saúde sobre a cólera e explica às comunidades onde as pessoas podem aceder a cuidados médicos caso fiquem doentes.
Este tipo de resposta é diferente da abordagem tradicional a surtos de cólera, que envolve ações levadas a cabo em muito maiores áreas geográficas, com o propósito de chegar a tantas pessoas quanto possível num determinado momento, e que requer recursos significativos.
Sendo a região de Somali a segunda maior na Etiópia, com vastas planícies que fazem fronteira com a Somália, o Djibuti e o Quénia, em vez de dar uma resposta ampla e que precisa de muitos recursos, a CATI assenta em vigilância extensiva e mapeamento das áreas de foco do surto.
Quando é reportado um caso de cólera, a CATI é instaurada proativamente logo nas fases iniciais de um surto para evitar maior propagação da doença. É a primeira vez que esta abordagem é feita na Etiópia.
Surtos de cólera exigem equipas multidisciplinares
Além das atividades rigorosas de busca de casos e da promoção de saúde desenvolvida com as autoridades de saúde locais, a MSF providencia apoio na instalação e gestão de um Centro de Tratamento de Cólera (CTC) no Centro de Saúde de Ayerdega, para providenciar tratamento e cuidados abrangentes a pacientes em estado grave da doença.
Simultaneamente, foi construída uma Unidade de Tratamento de Cólera (UTC) no Hospital de Jigjiga, que presta tratamento e cuidados iniciais a pacientes moderadamente doentes, e instalados cinco Pontos de Reidratação Oral em diversas partes da cidade.
Nestes pontos são fornecidas soluções de reidratação oral – um pó que se dissolve na água para tratar pacientes com cólera ligeira e sintomas de desidratação –, melhorando, assim, o acesso dos pacientes aos cuidados de que necessitam e diminuindo os números de chegada de pessoas ao CTC e à UTC.
As equipas da CATI são formadas por trabalhadores da MSF e do Ministério da Saúde etíope. Cada equipa inclui profissionais dedicados à vigilância dos contágios e recolha de dados, pessoal de enfermagem que administra as vacinas, uma pessoa responsável pela supervisão de água, saneamento e higiene, promotores de saúde e profissionais encarregues da prevenção e controlo de infeções no CTC, na UTC e nos Pontos de Reidratação Oral. Uma pessoa representante da unidade administrativa do bairro local, ou kebele, integra também a equipa para apoiar o envolvimento comunitário.
Resultados promissores
“Uma vez que temos recursos limitados para dar resposta ao surto, incluindo no que toca às provisões necessárias para realizar campanhas de vacinação em larga escala, devido à escassez de vacinas disponíveis, a introdução da CATI simboliza um ponto de viragem face à cólera nesta região”, frisa o responsável de emergências de saúde pública do Gabinete Regional de Saúde de Somali e coordenador da CATI, Ermias Amare.
Entre novembro de 2023 e fevereiro de 2024, a MSF e o Ministério da Saúde etíope trataram mais de 800 pacientes com cólera, administraram o limitado número de vacinas orais contra a cólera que estavam disponíveis a mais de 8 000 pessoas e entregaram kits de higiene e prestaram informação de promoção de saúde a cerca de 1 700 agregados familiares.
Apesar de a CATI estar ainda em fase experimental na Etiópia, e de ser necessária maior análise sobre a efetiva capacidade desta resposta para reduzir os contágios da doença e as mortes nas comunidades afetadas, os resultados iniciais são promissores.
De acordo com o Gabinete Regional de Saúde, o número de casos confirmados baixou em todos os distritos de Somali com exceção de um – o distrito onde o número de pacientes não está a diminuir tem apenas uma fonte de água na área, a qual está atualmente contaminada.
Cólera pode matar em horas mas é prevenível e tratável
Globalmente, foram reportados 735 000 casos de cólera no ano passado, o que representa um aumento de 40 por cento em relação ao número de casos registados em 2022. O número de mortes aumentou em 80 por cento no mesmo período.
Só em janeiro de 2024, foram notificados quase 41 000 casos e 775 mortes por cólera a nível mundial.
Na Etiópia, o Ministério da Saúde reportou 36 061 casos de cólera e 515 mortes entre 27 de agosto de 2022 e 26 de fevereiro de 2024. No número de casos totais, 4 870 são do período de 1 de janeiro a 26 de fevereiro do presente ano. A região de Somali é a mais afetada no país.
Todas as doses de vacina oral contra a cólera que estão em produção até meados deste mês de março foram já alocadas a países afetados pela doença, e a procura por mais doses da vacina continua a aumentar, com as reservas mundiais atualmente a zero.
Um alerta: aumentar a produção de vacinas para salvar vidas
A MSF tem vindo a desesperadamente fazer soar o alarme sobre as graves consequências desta escassez da oferta, instando os fabricantes a produzir urgentemente mais vacinas e a disponibilizar mais apoio técnico a novos fabricantes, de forma a acelerar os processos regulamentares para que seja possível aumentar drasticamente a produção que é precisa para salvar vidas.
Enquanto o fornecimento de vacinas permanecer lamentavelmente abaixo do necessário para proteger o cada vez maior número de pessoas que vivem em comunidades em risco de surto, a CATI é uma das ferramentas de resposta que pode ser usada para mitigar o impacto da escassez de vacinas.
A MSF ativou a CATI com sucesso em outros países onde a cólera é endémica como o Haiti e a República Democrática do Congo, tendo reduzido eficazmente o fardo da doença.
Agora, em colaboração com o Ministério da Saúde da Etiópia, a organização médica-humanitária está a compilar uma análise de impacto da abordagem concretizada em Jigjiga, e a antecipar novas parcerias para ajudar comunidades em risco noutras zonas do país.
Desde 15 de fevereiro passado, e na sequência da confirmação de que uma pessoa fora diagnosticada com cólera em Kebridehar, a segunda maior cidade da região de Somali, a MSF expandiu a resposta ao surto para essa zona. Há também atividades em curso na vila de Lafaciise, a 40 km de distância de Jigjiga, onde a MSF está a providenciar apoio com formações ao pessoal do Gabinete Regional de Saúde para a CATI.
Em plena pandemia global de cólera, que começou em 1961 e não chegou ainda ao fim, milhares de pessoas continuam em risco de ficar doentes e de morrer de uma doença que é totalmente passível de prevenir.
A Etiópia pode desempenhar um papel crucial em demonstrar a outros países que a abordagem da CATI pode reduzir as consequências da vergonhosa inação que estamos a testemunhar por parte dos fabricantes globais de vacinas em aumentar a produção.