Esquecidos

Vidas em suspenso no México: "Vi pessoas mortas quando atravessava a selva"

A organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) recolheu depoimentos de migrantes que estão retidos no México. O que motiva estas pessoas a emigrar não é simplesmente ir para os Estados Unidos. “Muitas vezes, fogem da violência que enfrentam nos países de origem, nas rotas migratórias, ou até mesmo no México”, lembra Rubelci López, responsável pelas clínicas móveis da MSF.

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Enquanto as autoridades da fronteira do México com os Estados Unidos preparam deportações em massa, a incerteza invade centenas de milhares de migrantes pelo México fora.

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Arrancou a construção de grandes instalações para alojar potenciais deportados e, ao mesmo tempo, estabelecem-se sistemas de transporte para levá-los até outras partes do México. Após enfrentarem violência e outras dificuldades numa longa e complexa rota migratória, as pessoas que se deslocam têm agora de lidar com políticas de migração cada vez mais estritas.

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Falámos com um colombiano, uma hondurenha e um guineense, todos encurralados no Sul do México. “É importante mencionar que o que motiva estas pessoas a emigrar não é simplesmente ir para os Estados Unidos. Muitas vezes, fogem da violência que enfrentam nos países de origem, nas rotas migratórias, ou até mesmo aqui, no México”, lembra o responsável pelas clínicas móveis da Médicos Sem Fronteiras (MSF) em Tapachulas, Rubelci López.

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Kevin: “O que me levou a partir foi a violência”

"Tenho 22 anos e venho de Huila [Sudoeste da Colômbia]. Estava já no quarto ano de Engenharia Industrial. Não queria nada deixar a Colômbia, porque lá tinha tudo: família, uma vida normal. Jogava futebol, sou adepto do Millonarios, mas também gosto dos clubes europeus: o Barça, Liverpool..."


"O que me levou a partir foi a violência. Os meus pais tinham uma plantação de café. De repente, um grupo armado começou a intimidar-nos. Queriam recrutar todos os que tinham cumprido serviço militar, porque já tínhamos sido treinados. Foi por isso que decidi fugir. Não quero pertencer a um grupo armado que não lute pelo bem do meu país.

Falei com o meu irmão, que está no Utah (EUA), há um ano. Estou no México há já cinco meses. Cheguei de avião à Cidade do México e trabalhava numa loja de ferragens, mas quando quis seguir com a minha viagem, as autoridades apanharam-me. Obrigaram-me a tirar o cinto e os sapatos, felizmente não perdi nada. No dia seguinte, 40 pessoas – venezuelanos, cubanos, hondurenhos, salvadorenhos e colombianos – foram transferidas de autocarro para Villahermosa (no estado de Tabasco, Sul do México). Daí, viajei até Coatzacoalcos e, agora, estou à espera do comboio. Estávamos todos a tentar chegar à fronteira antes da tomada de posse de Trump.

Se não tivermos dinheiro, é mesmo muito difícil deslocar-nos pelo México. Ninguém dá nada de graça e não podemos confiar nas pessoas, nem nos taxistas. Cheguei a receber ameaças no meu telemóvel:

- Dá-nos 50.000 pesos pela tua paz de espírito

- Preferes morrer do que pagar-nos?

Bloqueei o contacto. Sabia que o México era perigoso, mas nunca pensei que a aplicação CBP One deixasse de existir. O sistema tinha uma grande falha: não funcionava de maneira cronológica, mas aleatoriamente. O processo de seleção era muito lento. Tenho tentado desde que cheguei ao México, mas nunca me deram uma marcação, apesar de ter esperança de que esse dia viria.

A única opção que me resta é ir para a fronteira, entrar nos EUA e entregar-me. Se me dessem uma oportunidade, eu estudaria e aprenderia a falar inglês. Os meus pais perguntam-me como estou... dizem-me que se não estiver a aguentar, posso sempre voltar para trás, mas a minha única hipótese seria voltar para Bogotá, onde não tenho nada, nem ninguém. Voltar para a Colômbia assusta-me.



Natasha: “Só quero que os meus filhos possam ir à escola”

Yotibel Moreno

“Tenho 30 anos e sou hondurenha. Estou num abrigo em Tapachula (Sul do México) com a minha cunhada e os meus três filhos: duas raparigas com 12 anos e um menino com 4. O meu marido deixou as Honduras mais cedo, porque queriam recrutá-lo para os gangues. Não tenho notícias dele há um ano, não sei se está vivo ou se está morto.


Apanhei o primeiro autocarro da madrugada para fora das Honduras. Tive muito medo, mas não podíamos mais ficar ali. Tínhamos um negócio familiar, era suficiente para viver e sustentar os nossos filhos. No autocarro, obrigaram-nos a pagar para continuarmos a viagem e, ao início, concordei, mas eles aumentaram-nos a taxa... deixámos de ter dinheiro para comer. Disse-lhes que não podia pagar mais nada, que não tinha mais dinheiro.

- Podes pagar de maneira diferente... – disseram-me.

- Não posso fazê-lo à frente dos meus filhos.

- Arranja tempo e nós voltaremos.

Quando chegaram, obriguei os meus filhos a trancarem-se no quarto e a não saírem até que eu lhes dissesse que podiam. Fizeram o que quiseram comigo, e eu só rezava a Deus que as minhas filhas não me ouvissem. Um dia, disseram-me que a minha filha de 12 anos era muito bonita. Comecei logo a vender as coisas que tinha – tínhamos de partir, não queria que a minha filha passasse por aquilo que passei.

Chegámos de autocarro à Guatemala. Quando atravessámos o Rio Suchiate para entrar no México, um senhor mexicano protegeu-nos.

- Quem são elas? – perguntaram-nos quando chegámos.

- São a minha mulher, os meus filhos e a minha cunhada – respondeu.

- Como são uma família, podem entrar.

Conseguimos seguir viagem e o homem seguiu atrás de nós. Não podia deixar de reparar na sua cara assustada.

- Estão seguras agora, mas eles podiam ter violado a tua filha, disse-nos o senhor mexicano.

Tínhamos apenas 1.000 pesos (cerca de 50 dólares). Apanhámos o primeiro táxi que vimos e pedimos que nos deixasse num abrigo. Como mulher, estou exposta a mais perigos. Estou aqui há já três meses, cheia de medo. Nem consigo sequer pensar em juntar-me a uma caravana, ou em apanhar um autocarro. Já ouvi muitas histórias, por exemplo, de pessoas que têm uma marcação [com a aplicação CBP One] e um visto e, mesmo assim, são expulsas de autocarros com os documentos rasgados.

Preenchi a papelada para ficar no México e pedir uma marcação através da CBP One. Não sabia bem como fazê-lo e uma pessoa ajudou-me, mas inseriram mal os meus dados e eu nunca consegui a marcação. Vivo na angústia de não saber o que me espera e com o medo de que um dia eles me encontrarão. Quero apenas um sítio onde possa assentar, para os meus filhos irem à escola e para eu conseguir trabalhar.

Será que devia voltar para as Honduras? Se não estivessem lá aquelas pessoas que me fizeram mal, regressaria... mas é impossível saber isso.”


Mamadou: “Nunca pensei que a rota fosse tão complexa”

Yotibel Moreno

“Tenho 33 anos e estou a viajar com a minha mulher, Ramata, e a minha filha, Aishatu, que tem 1 ano e 8 meses. Somos da Guiné. Eu morei em Málaga durante sete anos, mas voltei ao meu país, envolvi-me num partido político e em alguns negócios, mas deu-se um golpe de estado e a minha situação tornou-se cada vez mais complicada, com ameaças à minha vida.

Por isso, decidimos partir. Pensei em ir para França, mas foi impossível tratar da papelada em tão pouco tempo. Voar para o Brasil foi muito mais fácil, e saímos de um dia para o outro, com a ideia inicial de chegar aos Estados Unidos.

Não imaginava que a rota migratória fosse tão complexa: do Brasil, fomos para a Bolívia, Peru, Equador, Colômbia... e finalmente apanhámos um barco até Darién. Vi pessoas mortas enquanto atravessava a selva: se soubesse que seria assim, nunca me teria metido nisto.

Depois de atravessar o Panamá, recebemos ajuda nas Honduras – fraldas para o bebé e permissão para estar no país por sete dias. Na Guatemala, todas as pessoas que conhecemos tinham uma arma e pediram-nos 250 doláres para atravessar o país, e ainda mais quando terminasse a travessia. Depois de atravessar o rio Suchiate para o México, fizeram-nos trocar todos os nossos dólares e cobraram-nos por um cartão telefónico.

Estou em Tapachula há já dois meses. Estava ainda no Peru quando vi a notícia da vitória de Trump. Fiquei desanimado e desisti da ideia de ir para os EUA. Candidatámo-nos para obter nacionalidade mexicana. Sinto-me um pouco fraco e, por isso, vim até à clínica. Há muitos mosquitos na casa onde estamos a viver e eu contraí malária.”