Uma comissão independente da ONU tornou-se esta terça-feira o primeiro organismo a considerar que está a ser factualmente cometido um genocídio em Gaza, situação que compara às determinadas no passado na Bósnia (antiga Jugoslávia), Ruanda e Darfur (Sudão).
A conclusão, tomada pela Comissão Internacional Independente da ONU sobre os Territórios Palestinianos Ocupados, segue critérios específicos e tem consequências não só políticas, mas também jurídicas e de responsabilização.
O que é o genocídio?
De acordo com a Convenção sobre o Genocídio de 1948 e o Estatuto de Roma, que criou o Tribunal Penal Internacional, é um crime internacional que envolve responsabilidade individual e acontece quando há a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso.
O povo palestiniano foi reconhecido como um grupo abrangido pela Convenção.
O genocídio ocorre através de qualquer um dos seguintes atos:
- 1.º O assassinato de membros do grupo.
- 2.º Lesão grave e irreparável da sua integridade física ou psíquica.
- 3.º Sujeição a condições de vida que conduzam à sua destruição física, no todo ou em parte.
- 4.º Medidas destinadas a impedir os nascimentos dentro do grupo.
- 5.º Transferência forçada de crianças para outro grupo.
A Comissão da ONU estabeleceu esta terça-feira que Israel cometeu os primeiros quatro destes cinco crimes contra os palestinianos de Gaza e que o fez com a intenção específica ('dolus specialis') de destruir o grupo protegido, no todo ou em parte.
Para a Comissão, não é necessário um número mínimo de vítimas para que um ato constitua genocídio, nem é relevante a forma como os assassínios são cometidos.
Qual foi a comissão que determinou o genocídio em Gaza e como funciona?
Trata-se de uma Comissão Internacional Independente de Inquérito, liderada pela juíza sul-africana Navi Pillay, ex-alta-comissária da ONU para os Direitos Humanos e ex-presidente do Tribunal Penal Internacional para o Ruanda.

Funciona como um mecanismo de apuramento da verdade e de responsabilização. É de natureza técnica e temporária, e o seu objetivo é documentar os crimes de forma independente para que outros organismos (nacionais ou internacionais) possam tomar medidas legais.
A sua criação foi decidida pelo Conselho de Direitos Humanos em 2021 para investigar as crescentes violações dos direitos humanos que há muito se verificavam nos territórios palestinianos ocupados por Israel.
Na verdade, é a continuação de uma série de instrumentos de investigação que as Nações Unidas têm há décadas para os territórios palestinianos da Cisjordânia, Gaza e Jerusalém Oriental.
Que outros órgãos judiciais estão a investigar a situação em Gaza?
O Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) emitiu medidas provisórias em janeiro de 2024, ordenando a Israel que tome medidas para prevenir atos que possam constituir genocídio, mas ainda não emitiu uma declaração final sobre a existência de genocídio.
O procurador do Tribunal Penal Internacional (TPI) também investigou a situação na Palestina e mencionou possíveis crimes de guerra e crimes contra a humanidade, bem como a possibilidade de genocídio, mas não emitiu uma sentença final.
No entanto, emitiu mandados de detenção para responsáveis políticos israelitas, incluindo o primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu.
A história dos tribunais internacionais nas últimas décadas mostra que estes demoram anos a emitir um veredicto.
Vários organismos de direitos humanos, incluindo relatores especiais da ONU e organizações de direitos civis publicaram relatórios que indicavam que a conduta de Israel em Gaza constitui genocídio.
Que paralelo se pode traçar com as investigações de genocídio no Ruanda, na Bósnia e no Darfur?
No caso da Bósnia, o genocídio decorreu entre 1992 e 1995, e uma Comissão de Peritos da ONU recolheu informações e provas sobre as graves violações do direito internacional humanitário naquele país. As suas conclusões serviram de base para a criação do Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia.
A partir de 2000, o Tribunal emitiu várias sentenças sobre o genocídio na cidade de Srebrenica, em 1995.
Este caso estabeleceu um precedente para os procedimentos de investigação e documentação da ONU, que passaram de relatórios políticos para a utilização de mecanismos técnicos, forenses e judiciais, como acontece agora no caso de Gaza.
Em relação ao Ruanda, enquanto decorria o genocídio, a ONU nomeou um relator especial para investigar os massacres. O relator viajou para o Ruanda e foi o primeiro a declará-lo genocídio. O seu trabalho levou à criação de uma Comissão Internacional de Inquérito para o caso, responsável por examinar as provas e identificar os autores.
Só mais tarde foi criado o Tribunal Penal Internacional para o Ruanda, que documentou o planeamento centralizado do genocídio.
Em relação ao Darfur (região ocidental do Sudão), a ONU criou uma Comissão Internacional de Inquérito em 2004. No seu relatório final, publicado um ano depois, concluiu-se que tinham sido cometidos crimes de guerra e crimes contra a humanidade e que havia a possibilidade de genocídio, embora não houvesse provas suficientes de uma intenção específica de destruir um grupo enquanto tal.
O resultado deste trabalho foi a base para o Conselho de Segurança encaminhar a situação no Darfur para o TPI, que acusou formalmente o então Presidente Omar al-Bashir de genocídio contra os grupos étnicos Fur, Masalit e Zaghawa. Foi a primeira vez que um chefe de Estado recebeu tal acusação do tribunal.