José Saramago disse que estamos a viver novamente na caverna de Platão. Nesta alegoria os prisioneiros estão acorrentados e apenas conseguem ver as sombras projetadas na parede, que percecionam como sendo a realidade. Segundo Saramago vivemos num mundo em que as imagens que os media nos mostram substituem a realidade.
Como na Caverna de Platão, a realidade editada nas redes sociais é entendida como sendo a própria realidade, e não uma versão adulterada. De igual modo, como o prisioneiro que se libertou da caverna e observou o mundo sem sombras, também é possível ter um sentido crítico na relação com as redes sociais. No entanto, dificilmente este “prisioneiro esclarecido”, que regressa à caverna para alertar os outros de que estão a viver numa ilusão, conseguirá chamar a atenção para esse jogo de aparências.
Há alguns anos assisti a um sócio de uma consultora dizer entusiasticamente numa conferência de recrutamento com trezentos jovens recém-licenciados que todos tinham uma boa possibilidade de serem recrutados. A intenção seria inspirar, motivar, desafiar. Na prática, o que fez foi incentivar aqueles jovens a apostar todas as suas fichas nessa possibilidade remota para a própria consultora ter mais candidatos por onde escolher. Julgo que tinham seis vagas.
Este exemplo pretende ilustrar a forma como por vezes tomamos decisões e moldamos a nossa atuação em função de expectativas irrealistas.
As realidades “fabricadas” nas redes sociais transformam pessoas, experiência e emoções em ações de marketing pessoal, que têm como objetivo chamar a atenção e que premeiam os que se destacam pela sua capacidade de cativar a audiência. Este ciclo contínuo de comparação e validação fomenta um narcisismo coletivo, onde o valor pessoal é medido por likes e seguidores, e não por realizações genuínas.
Existe um efeito conhecido como “comportamento de ninho”, em que um grupo penaliza coletivamente um membro por ações egoístas de forma a manter a harmonia e justiça dentro desse grupo e promover ambientes de cooperação e resolução de conflitos. Por exemplo, irmãos que apontam o favorecimento dos pais a um dos filhos, ou amigos que naturalmente confrontam e afastam um elemento “tóxico”. Este comportamento resulta da necessidade ancestral de coesão e cooperação para sobrevivência.
O facto de deslocarmos estas relações para as redes sociais significa que não existe um escrutínio dos pares a ações que se caracterizam por manias de grandeza, necessidade de admiração e pouca empatia pelos outros. Estas pessoas, alheadas do mundo e desconectadas entre si, desenvolvem um sentido de superioridade, sentem-se especiais e únicas, e esperam reconhecimento sem realizações que o justifiquem.
As redes sociais abundam de exemplos destas personalidades, habilmente capturadas na sua essência egocêntrica e presunçosa por humoristas como Joana Marques.
No entanto, escondem outro problema. Muitas destes indivíduos, cujos comportamentos desviantes deveriam ser facilmente desmascarados, servem como referência de êxito pessoal. O impacto negativo de sua influência está diretamente ligado à inutilidade das diversas fórmulas simplistas de transformação pessoal que promovem. Algumas pessoas conseguem retirar valor e motivação desses conteúdos, contudo, a maioria sente-se pressionada e inadequada por não conseguir atingir os padrões idealizados que lhe são propostos.
Os jovens, uma vez mais, são os mais vulneráveis. Por crescerem num ambiente saturado de redes sociais, onde a partilha e a validação dos seus amigos é frequentemente medida em likes, muitos jovens desenvolvem uma autoimagem distorcida e uma busca incessante por aprovação. A pressão para corresponder a padrões irrealistas, constantemente promovidos por influenciadores e figuras públicas, pode levar a problemas de ansiedade, solidão e baixa autoestima.
A exposição contínua a estas vidas “perfeitas” pode desencadear sentimentos de inadequação e uma insatisfação crônica com a sua própria realidade. O facto de não terem interações sociais reais e de se refugiarem nas telas, mesma quando estão fisicamente no mesmo espaço, resulta no subdesenvolvimento de habilidades sociais e dificuldades de relacionamento. A dependência excessiva das redes sociais é diretamente responsável pelo isolamento social, com impacto no seu desenvolvimento emocional.
A ideia de que "o narcisista atravessa a floresta e apenas vê lenha para a sua fogueira" ilustra de forma poderosa como as pessoas, cada vez mais, percecionam o mundo ao seu redor. Esta visão limitada e egoísta impede a formação de relacionamentos autênticos e a apreciação da beleza e da simplicidade. As redes sociais, ao invés de serem uma ferramenta de relação e partilha, tornam-se palco de exibições e pressões sociais exacerbadas. Como não é possível ter uma Joana Marques em cada perfil, teremos de fomentar essa consciência coletiva para evitar que estes comportamentos se tornem a norma.
O facto de não existir um "comportamento de ninho" eficaz nas redes sociais significa que os jovens raramente enfrentam consequências imediatas por ações egoístas. Devemos tentar colmatar esta lacuna promovendo a empatia, o respeito, a autoconfiança e a valorização de realizações genuínas para conseguir navegar melhor as sombras de Platão.