José Gomes Ferreira

Diretor-adjunto de informação da SIC

Opinião

Reina o desgoverno nas grandes obras públicas

Opinião de José Gomes Ferreira. Esta é apenas a opinião de um leigo, com base nas afirmações de cada vez mais especialistas em sistemas de transportes: as apostas do Governo numa nova rede ferroviária nacional, em bitola ibérica, e num novo grande aeroporto internacional no concelho de Benavente, são erradas e vão levar ao desperdício de muitos milhares de milhões de euros. Para além das questões operacionais, técnicas e financeiras, acrescento: em breve, os concursos já lançados estarão sob investigação devido a graves problemas com as regras europeias de concorrência e muito provavelmente também sob investigação judicial…
Reina o desgoverno nas grandes obras públicas
Monty Rakusen

Já em período de gestão, no dia 12 de janeiro, o Governo decidiu avançar com o concurso internacional para a construção do primeiro troço da nova linha ferroviária de Alta Velocidade, entre Porto e Oiã, no valor de 1.950 milhões de euros. Para poder aproveitar os últimos dias da janela temporal de recurso à ajuda da União Europeia, António Costa pediu o apoio de Luís Montenegro, que acabou por ser concedido. Uma semana depois, o secretário de Estado das Infraestruturas, Frederico Francisco, admitiu publicamente que cada troço da nova via ferroviária de alta velocidade entre Lisboa, Porto e até à fronteira norte na ligação com Vigo, deverá rondar os dois mil milhões de euros, pelo que o custo total desta nova linha deverá chegar aos 8 mil milhões de euros.

É preciso sublinhar: OITO MIL MILHÕES DE EUROS, para construir uma única linha de caminho de ferro em Portugal! A este preço, a construção de toda a rede de alta velocidade, com ligações à fronteira pela Beira Alta e por Elvas - Badajoz, não deverá ficar por menos de 15 mil milhões de euros.

Problema grave, para grande parte dos especialistas de sistemas de transportes, mas vantagem evidente, na opinião do Governo: a nova rede ferroviária de alta velocidade em Portugal vai ser construída em bitola ibérica.

Facto: a nova rede ferroviária de alta velocidade em Espanha está a ser construída há mais de duas décadas, em bitola europeia. O objetivo é permitir a ligação fácil ao coração da Europa, nomeadamente França, Alemanha e Itália, e ao mesmo tempo permitir a concorrência dos operadores de comboios desses países em território espanhol. Essa concorrência já se verifica, com os novos operadores espanhóis, mas também franceses e italianos, a fazerem baixar drasticamente os preços dos bilhetes aos consumidores em Espanha e, ao mesmo tempo, retirando passageiros ao transporte aéreo (poluente) entre cidades espanholas e nas ligações de curta e média distância com a Europa.

Argumentação do Governo português para não fazer o mesmo: se a nova linha de alta velocidade ferroviária Lisboa Porto começasse a ser construída em bitola europeia, ficaria isolada do resto da rede, sem hipótese de ser utilizada durante vários anos até à sua conclusão. Mais, se toda a nova rede ferroviária em Portugal estivesse a ser construída em bitola europeia, ficaria não só isolada da restante rede já existente, como das ligações a Espanha e à Europa, precisamente porque Espanha não tem qualquer ligação ferroviária até à fronteira portuguesa em bitola europeia.

Ora esta última afirmação, sendo um facto, encerra um enorme subterfúgio para justificar a construção das novas linhas de alta velocidade em Portugal em bitola ibérica: na verdade, a Espanha não fez nenhuma ligação em bitola europeia até à nossa fronteira porque os sucessivos governos portugueses decidiram abandonar o que ficou combinado na cimeira ibérica da Figueira da Foz, em 2004: a construção da rede de alta velocidade em bitola europeia nas ligações transversais pela Beira Alta e Alto Alentejo e no eixo ferroviário vertical Lisboa-Porto. Como sabemos, o projeto de alta velocidade Poceirão-Caia, lançado ainda pelo Governo de José Sócrates, teve de ser anulado pelo de Passos Coelho por o país ter entrado em regime de assistência financeira internacional. Até hoje o consórcio vencedor, o ELOS, reclama uma avultada indemnização que já vai em 260 milhões de euros.

Facto indesmentível: a Espanha não construiu nenhuma ligação em bitola europeia a Portugal, precisamente porque não poderia rentabilizar nenhuma ligação nessas condições por falta de comparência do lado português. Assim, fomos nós que escolhemos a nossa própria condição de “ilha ferroviária”.

O Governo garante agora que não há nenhum problema por as novas linhas estarem a ser construídas em bitola ibérica porque as travessas ficam já com as “presilhas” que permitirão mais tarde mudar ambas as fiadas de carris para a bitola europeia. Além disso, o Ministério das Infraestruturas argumenta que é possível usar material circulante com eixos telescópicos que permitam usar as redes de bitolas diferentes e que os próprios operadores ferroviários, nomeadamente os de transporte de mercadorias, pedem mesmo a renovação da rede ferroviária em bitola ibérica para garantir a operabilidade em toda a rede nacional. (Ora se os eixos variáveis resolvem o problema das diferenças de bitola, então não haveria problema em usar comboios equipados com esses eixos na linha Lisboa-Porto tanto no troço em bitola europeia como na parte em bitola ibérica).

Mas além da argumentação utilizada para defender os investimentos em bitola ibérica, fonte do Governo junta uma outra afirmação extraordinária: na verdade nunca mais será feita a migração da nova rede ferroviária de bitola ibérica em Portugal para a bitola europeia porque “não será necessário!”, embora se escuse a dizer o mesmo em público.

Problemas denunciados nos sucessivos manifestos dos especialistas de sistemas de transportes: Portugal fica efetivamente isolado da rede ferroviária europeia; o transporte ferroviário de mercadorias portuguesas para exportação está comprometido porque terá de ser sempre submetido a transbordo em qualquer “porto seco” em Espanha para poder chegar à Europa, aumentando o respetivo preço e diminuindo automaticamente a competitividade; a aposta, errada, do Governo português foi no transporte de passageiros em alta velocidade no eixo Lisboa-Porto-Vigo, em detrimento das mercadorias nos eixos transversais; as inclinações (pendentes) e outras características da linha de alta velocidade Lisboa-Porto-Vigo são incompatíveis com o transporte ferroviário em composições de 750 metros, inviabilizando a utilização futura desta linha também para esse fim.

Nesta matéria, entre o lado do Governo, do primeiro-ministro, do Ministério das Infraestruturas e dos especialistas contratados que os apoiam, e o lado dos especialistas de sistemas de transportes subscritores do manifesto que denuncia a transformação de Portugal numa “ilha ferroviária” em relação a Espanha e à Europa, vai uma divergência de 180 graus.

Para os especialistas independentes, as verdadeiras razões para a construção das novas linhas de alta velocidade em bitola ibérica são as seguintes:

- O Governo não quer que a CP tenha concorrência de empresas de Alta Velocidade de Espanha e de França (veja-se como a CP foi a correr lançar o concurso para a compra de 117 novos comboios por mais de 800 milhões de euros antes de o Governo sair, para que o material circulante seja de bitola ibérica, dando o facto como consumado);

- Os sindicatos do setor ferroviário, manipulados pelo PCP e pelo BE, poderão assim continuar a mandar na CP (e fazer as greves que quiserem como têm feito até agora), ficando assim garantido o apoio daqueles partidos a um futuro governo socialista;

- Os novos donos disto tudo, Mota-Engil, Teixeira Duarte e outras empresas do regime, terão assim grandes obras para muitos anos, porque tudo indica que os concursos portugueses vão ser feitos à medida, tal como o primeiro-ministro já deu a entender e como veremos adiante. Formalmente, as grandes empresas espanholas, francesas e italianas até poderão participar, mas na prática acabarão por ser afastadas…

Este último ponto está estreitamente ligado à questão do financiamento das obras:

As linhas em bitola europeia eram cofinanciadas a 80% pela UE e a Espanha aproveitou bem essa disponibilidade de dinheiro nos últimos 20 anos.

Neste momento, Portugal pode aspirar a uma comparticipação de apenas 20 por cento do custo dos projetos (os tais pouco mais de 700 milhões que António Costa pediu a Luís Montenegro para ajudar a garantir), e se quiser mais algumas migalhas do dinheiro europeu disponível tem de ir a rateio entre os restantes Estados-membros da União que tenham projetos idênticos.

Não tendo o Estado os quase 80 por cento de verba necessária para fazer a gigantesca obra, o Governo decidiu que o modelo de financiamento da construção e manutenção da nova linha de Alta Velocidade ferroviária em Portugal vai ser em parceria público-privada. O consórcio liderado pela Mota-Engil, que inclui também a Teixeira Duarte e outras grandes construtoras nacionais, já se pôs em bicos de pés para ganhar a obra, através de declarações e entrevistas, nomeadamente do presidente executivo da Mota-Engil.

António Costa respondeu-lhe indiretamente no dia do lançamento do concurso manifestando o desejo “politicamente incorreto” (palavras do próprio) de que sejam as empresas portuguesas a ganhar. “Já cheguei a uma fase da vida em que posso dizer coisas politicamente incorretas”, acrescentou o primeiro-ministro enquanto o secretário de Estado das Infraestruturas se agitava na cadeira ao lado... António Costa acrescentou, que o processo foi construído “sem excluir a capacidade de as empresas portuguesas poderem participar e ganhar o concurso. (…) Não há país que não se modernize sem um forte setor da construção civil e obras públicas. (…) Há países onde, sendo a legislação a mesma, se verifica a coincidência de só ganharem as empresas nacionais, os outros países também fazem o mesmo!”.

Um dia destes teremos todos estes contratos a ser investigados pela Direção-Geral da Concorrência Europeia por razões de concorrência em concurso internacional, e pelo Ministério Público por suspeitas de algo mais grave… E mais uma vez os políticos (ir)responsáveis dirão que não pode ser!, que é mais um caso de judicialização da Política!

Outra vertente desta errada política de investimentos na ferrovia está ligada à construção de um novo grande aeroporto internacional na zona de Lisboa, mais concretamente no sul do concelho de Benavente. Se a prioridade do Governo tivesse sido o retomar da construção da linha de Alta Velocidade entre o Poceirão e Caia, combinando com o Governo de Madrid a continuação do investimento do outro lado da fronteira, tudo em bitola europeia, Portugal ficava decisivamente ligado à Europa, tanto para transporte de passageiros como de mercadorias. Já existe uma grande estação moderna no Pinhal Novo a que os passageiros podem chegar facilmente pela linha de bitola existente, desde Lisboa e de outros pontos de origem no país. Bastava fazer a ligação em bitola europeia do Poceirão ao Pinhal Novo para esta estação se transformar no interface de ligação rápida à Europa.

Assim se poderia evitar a realização de centenas ou milhares de voos de Lisboa para Madrid, Barcelona e mesmo Toulouse e outras cidades espanholas e francesas. Assim se prosseguiria uma efetiva política de descarbonização do transporte de curta e média dimensão nesta parte sudoeste do continente europeu.

Assim se adiaria a construção de uma nova ponte sobre o Tejo entre Chelas e o Barreiro que vai custar mais uma verdadeira fortuna.

E assim se poderia continuar a utilizar o aeroporto da Portela, melhorado com as obras que finalmente vão arrancar, e reforçado com uma solução já existente como o Montijo ou Alverca. Os especialistas de transportes alertam, por outro lado, que o tempo dos grandes Hub da aviação, como o novo aeroporto Alcochete/Benavente quer vir a ser, está a acabar. Agora os passageiros querem é ir de cidade para cidade sem escalas, ponto a ponto, e as companhias aéreas low cost estão precisamente a responder a este tipo de procura. Por outro lado, nenhum aeroporto nos centros das cidades fechou até agora. Veja-se o caso do aeroporto da City, em Londres, que continua a funcionar. Mas para viabilizar o novo grande aeroporto de Lisboa em Benavente seria preciso fechar o da Portela… Os líderes das low cost a operar em Portugal já estão a avisar que não vão deixar a Portela por nada…

Com obras de melhoramento da atual linha na ligação ao Porto e ao Norte, a solução da ligação Pinhal Novo-Caia em bitola europeia representaria uma poupança enorme para o país.

O que está previsto: 8 mil milhões de investimento na nova linha Lisboa Porto Vigo, mais de 15 mil milhões para o resto da rede de alta velocidade, mais 8 mil milhões para um novo aeroporto internacional em Benavente, mais 2,5 mil milhões para uma nova ponte ferroviária em Lisboa, mais as ligações ferroviárias e rodoviárias ao aeroporto, um valor monstruoso próximo dos 30 mil milhões de euros tem simplesmente um nome – Esbanjamento de dinheiro que, a médio prazo, nos vai conduzir a uma nova bancarrota.

Para terminar, só mais uma nota sobre o esbanjamento de dinheiro: no atual projeto da alta velocidade ferroviária está prevista a renovação da estação de Campanhã e, pasme-se, a construção de uma caríssima estação subterrânea em Gaia! A dos passos do Porto! Se isto não é arranjar obras para os amigos ganharem dinheiro, muito dinheiro, o que é?

Pobre país, aquele que é incapaz de aprender com os seus próprios erros.

Felizmente que o novo governo ainda vai a tempo de reparar este desgoverno nas grandes obras públicas em Portugal.