“Renda média subiu 48,7%”, “Lisboa passa, pela primeira vez, marca dos dois mil euros de renda média”, “Valor da renda média é agora 519 euros mais caro do que há um ano”, “Preços da habitação subiram 19% em 2022, o maior aumento anual em 30 anos”, “Imobiliário: preços ‘exuberantes’ vieram para ficar”.
São apenas alguns exemplos de notícias divulgadas no final de dezembro de 2022. A nenhum deles o comediante Diogo Faro ficou indiferente e decidiu agir. Nas redes sociais, no início do ano, partilhou um “vídeo cómico-trágico” no qual abordava de forma irónica mas séria um problema para o qual o próprio Governo, meses depois, iria tentar travar.
O vídeo de pouco mais de um minuto acabou por ter milhares de visualizações e outras tantas partilhas. Mas o que aconteceu depois foi para Diogo a prova de que era preciso agir.
“Comecei a receber testemunhos de casais que não se podiam divorciar, de pessoas mais velhas que deviam ter uma vida sossegada, de jovens, de pessoas - médicos, engenheiros - que trabalham há anos e tiveram de voltar para casa dos pais, de pessoas que tiveram de optar entre comprar medicação ou pagar a renda. Uma panóplia de casos, alguns dramáticos de pessoas em total desespero e a falar em suicídio”, conta.
Não podia ficar indiferente e partilhou esses testemunhos com jornalistas. Era preciso chamar a atenção para “um problema transversal” a toda a sociedade portuguesa e que se soma ao aumento de preços dos alimentos, dos medicamentos, dos combustíveis, da energia.
Nesse sentido, “sim, creio ter contribuído para impulsionar bastante esta causa e para dar visibilidade ao que se está a passar”, diz à SIC Notícias, fazendo questão de salientar o trabalho que “há décadas” é feito por vários movimentos.
E, poucas semanas depois, chegou o anúncio: “Eu avisei que as coisas estavam a mexer, que íamos fazer barulho, porque a situação atual é completamente insustentável para cada vez mais gente. Enquanto direito constitucional, a habitação em Portugal parece mentira. Por isso, dia 1 de Abril saímos à rua”.
O objetivo é sair à rua não só na capital mas em várias cidades. Há protestos agendados para este sábado em mais cinco cidades – Porto, Aveiro, Braga, Coimbra e Viseu. E quais são as expectativas?
Sem se comprometer com números, apesar dos milhares de seguidores nas páginas das redes sociais do casaeumdireito, Diogo Faro acredita numa manifestação com uma “dimensão importante” e que não passará despercebida.
“Estamos a fazer uma coisa impactante. Convidámos fanfarras e grupos de samba para fazermos a festa na luta e a luta na festa. Claro que o assunto é muito sério mas podemos reivindicar direitos enquanto dançamos e cantamos. A manifestação é muito mais do que rendas e prestações ao banco e uma vasta lista de coletivos - movimentos LGBT, feministas, a greve climática estudantil - juntaram-se porque merecemos viver e não estar só a sobreviver, com a corda ao pescoço. [Pelo que,] a junção de todos estes movimentos pode dar [à manifestação uma] dimensão importante.
O protesto está marcado para as 15:00 deste sábado, dois dias depois de o Governo ter apresentado e aprovado a versão final do pacote Mais Habitação. Nele constam medidas para ajudar as famílias a enfrentar a crise no imobiliário, mas o comediante e ativista tem uma opinião diferente: “Estruturalmente, não vai acontecer nada”.
“Precisei de colírio para os olhos, tal foi a quantidade de areia que o Governo nos mandou. Não vai acontecer absolutamente nada. E com os ordenados que temos, já não dá. (…) As rendas têm de baixar” e tem de haver uma aposta na “fiscalização”, sugere, dando o exemplo de um anúncio que o marcou: “Meia cama que estava a ser arrendada por 300 euros. Isto é que é extremismo”.
Casas de amigos estão a tornar-se abrigos
A viver há 15 anos em Lisboa, e apesar de não ter sofrido “na pele situações mais graves como despejos ou términos de contrato”, Daniela Duarte já teve de trocar de casa devido a aumentos de renda.
Hoje, vive na freguesia de Benfica (Lisboa) “com muito menos condições”, mas nem se atreve “a exigir qualquer tipo de manutenção, não vá a empresa proprietária lembrar-se de aumentar o valor da renda”, e comprar está fora de questão.
Mas há quem esteja pior, relata. “Infelizmente, conheço pessoas que estão a encontrar abrigo em casa de amigos porque não conseguem sequer arrendar um quarto em condições dignas por um valor justo” e, alerta em entrevista à SIC Notícias, “no meu bairro, onde até 2019 não existiam praticamente pessoas em situação de sem-abrigo, nos dias de hoje, a cada semana assiste-se a alguém novo nestas circunstâncias”.
Aos 37 anos, a enfermeira de profissão partilha da opinião de Diogo Faro. O pacote do Governo não só chega “demasiado tarde” como “não será solução” para “travar o caos que se instalou”.
“Para além de muito limitado, acaba por favorecer as pessoas que já lucram com o mercado imobiliário, em vez de regular a forma como este se processa e facilitar o acesso a quem o quer usufruir, desde jovens a idosos. O mercado livre é imune ao bom senso, há que regular a forma como está a ser processado. Grande parte das medidas serão para aplicar em futuras situações, acabando por não dar resposta à realidade já existente e que condiciona a vida da maioria das pessoas”
Como muitas outras pessoas, Daniela não ficou indiferente ao vídeo do comediante e, se já antes queria ser uma voz ativa por esta causa, a iniciativa de Diogo Faro só a fez dar o primeiro passo. Este sábado vai participar na manifestação porque “a situação está a tornar-se cada vez mais insustentável”.
“Infelizmente sempre houve pessoas marginalizadas a quem é vedado o direito de viver em condições minimamente dignas. (…) o mercado imobiliário tornou-se um bem de luxo, apenas acessível a investidores externos ou particulares com muito boas condições financeiras. Não podemos esperar pelo bom senso de quem tem imóveis no mercado quando podem receber um valor muito mais avultado”, alerta.
Mais: “Isto afeta todas as faixas etárias e é necessário mostrar este descontentamento na rua e pressionar quem tem o poder de regular o mercado. Neste momento é a única solução viável para evitar uma escalada na situação (…) e tentar controlar o caos, que já se instalou".
Questionada sobre o que faria se tivesse ela, Daniela Duarte, o poder de decidir qual o rumo a seguir, não hesitou na resposta. “Colocar as necessidades das pessoas no centro das políticas públicas. O direito à habitação é um direito fundamental e não pode ser ultrapassado pelo interesse de lucro da pequena fração de investidores do mercado imobiliário”, defende, sublinhando que a opção “pelo lucro imediato irá trazer consequências a longo prazo”.
Enquanto enfermeira alerta, desde logo, para “consequências na saúde mental", mas também "nos indicadores demográficos, no setor social, na produtividade e consequentemente na economia do país”.
Mas terá a manifestação impacto? Daniela espera que, pelo menos, "dê a real noção da quantidade de pessoas insatisfeitas e afetadas e, sobretudo, tenha um resultado positivo na criação de outro tipo de medidas por parte do Governo que se traduzam em condições dignas de habitação para quem as não tem e que as pessoas consigam, de facto, casas que consigam pagar”.
Mais logo, quando chegar à Alameda espera encontrar “muita gente” e de vários quadrantes. “Desde as minorias que sofrem há muito mais tempo este problema, (…) aos mais novos, estudantes, (…) jovens adultos que não conseguem ser independentes, nem constituir família, casais que querem separar-se mas que coabitam num clima de violência psicológica, até aos mais velhos que têm de escolher entre um teto ou comprar medicação, e que ultimamente são alvos de despejo sem soluções de retaguarda”.