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Duas coisas que interessam dizer sobre o crime no Centro Ismaili de Lisboa

Duas coisas que interessam dizer sobre o crime no Centro Ismaili de Lisboa
PEDRO NUNES

É necessário refletir sobre como falar publicamente de perturbações mentais associadas a crimes, tanto quanto o que não deve ser dito, sobretudo enquanto não há certezas.

Este texto não é sobre Abdul Bashir, refugiado afegão, pai de três crianças menores, cuja mulher morreu num campo de refugiados e que assassinou no Centro Ismaili de Lisboa duas pessoas envolvidas na sua integração em Portugal. Sobre Abdul Bashir não há muito mais a dizer no espaço público porque tudo o que importa para o caso está nas mãos das ciências forenses, da psicologia e dos tribunais.

Mas, há duas coisas que interessam dizer.

Uma é a imprudência que se cometeu ao classificar o comportamento deste homem como surto psicótico. É possível que seja o caso, como talvez não. Sobretudo, não há forma de o dizer em poucas horas, embora o tenhamos ouvido por parte de representantes institucionais e de especialistas destas áreas.

Entende-se a urgência das respostas perante a incredulidade e o medo de terrorismo. Mas esta urgência não pode ser conseguida à custa da densificação de estereótipos, preconceitos e estigmas. O passar dos dias tem trazido esta mensagem à tona, mas os danos iniciais estão feitos. O que ficou quando mais pessoas estavam focadas no assunto foi: "um maluco" matou estas mulheres.

É necessário refletir sobre como falar publicamente de perturbações mentais associadas a crimes, tanto quanto o que não deve ser dito, sobretudo enquanto não há certezas. Isto é mais ainda relevante em Portugal, dada a elevada prevalência de perturbações mentais e porque parte desse problema está na baixa literacia que se reflete em medo e vergonha de procurar ajuda especializada.

A segunda coisa que interessa dizer tem a ver com as condições de vida dos refugiados. Repito: isto ultrapassa o caso de Abdul Bashir, logo a sua condição psíquica, o seu percurso de vida e as condições de que beneficia em Portugal.

A literatura mostra que entre os refugiados, os fatores de stress pós-migração são tão graves quanto os fatores pré-migração. Entenda-se, por isso, a grande vulnerabilidade física e psicológica a que estas pessoas estão sujeitas pela fome, violência, perseguição, doenças ou destruição, mas que essa vulnerabilidade não termina com a chegada a um país de acolhimento. A falta de coordenação entre países e de consenso acerca das políticas ditam que as condições de acolhimento estão longe de conseguir fazer face ao problema dos refugiados.

A prevalência de perturbações mentais entre os refugiados é considerada muito elevada em comparação à população em geral: a depressão é sete vezes superior e o stress pós-traumático é entre quatro a cinco vezes superior. Estes resultados têm sido transversais a vários estudos internacionais.

O problema não afeta apenas adultos. Crianças e jovens representam cerca de metade dos refugiados no mundo e entre estes estão descritos casos de stress pós-traumático em torno dos 23%, ansiedade em torno dos 16% e depressão em torno dos 14%. Estas crianças e jovens acumulam situações de desvantagem: à sua pior condição social, económica e ameaça à sua existência, acrescem maiores riscos de insucesso escolar e pior integração nos países de acolhimento devido às disrupções emocionais com que lidam.

A conclusão é que o acolhimento de refugiados não é um problema de um único país e não será um único país a conseguir assegurar as respostas necessárias para problemas que têm magnitudes que poucos conseguem imaginar.

Entre os países de acolhimento, o entendimento deve continuar a ser de cortar com o ciclo desvirtuoso destas pessoas o mais depressa possível. Sabe-se que grande parte dos problemas dizem respeito à saúde mental, os quais não só não desaparecem como podem agravar-se após o acolhimento.

Ações centradas na integração cultural, escolar, o acesso a oportunidades financeiras condignas e igualitárias e o respeito pela diversidade étnico-religiosa diminuem emoções de revolta, incompreensão, saturação e injustiça. No fundo, importa conseguir diminuir o número de pessoas que sentem que não têm nada a perder. Talvez tenha sido o que Abdul Bashir sentiu.

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