O discurso de Catarina Martins era um dos mais esperados na convenção do Bloco de Esquerda, que decorre este sábado. Depois de 11 anos a coordenar o partido, Catarina Martins deixa a liderança bloquista, abrindo portas a uma nova geração. Mas não será “uma despedida”.
“Ao fazer esta última intervenção como coordenadora do BE, não o ouçam como uma despedida. Termino o mandato, mas continuo a caminhar aqui. Estou a fazer um balanço para o futuro. É um privilégio fazer parte das lutas”, disse Catarina Martins
Para a coordenadora cessante, "uma década é pouco tempo, mas conta muito para quem vive com este ativismo de querer mudar o Mundo". O discurso terminou com uma ovação de cerca de cinco minutos, de pé, dos delegados da XIII Convenção Nacional bloquista.
"PS com maioria absoluta achou que chegara o seu momento cavaquista"
A coordenadora do BE apelidou o PS de "padrasto de todo o populismo", considerando que os problemas estruturais do país foram agravados porque os socialistas acharam que, com a maioria absoluta, tinha chegado o seu "momento cavaquista".
Catarina Martins apontou à maioria absoluta, acusando o PS de usar "o aparelho do Estado", perder-se "em guerras internas" enquanto Portugal "assiste incrédulo a um governo paralisado e enredado nos seus próprios erros".
"Todos estes problemas estruturais foram agravados porque o PS, com maioria absoluta, achou que chegara o seu momento cavaquista", acusou, considerando que os socialistas quiseram uma "política no avesso da esquerda".
Para a ainda coordenadora do BE, o PS de António Costa pode "vitimizar-se", mas deixou claro que "não foram a covid e a guerra que criaram as dificuldades atuais" nem "nenhuma oposição que criou qualquer dos problemas que os ministros inventam".
"E assim se entretém uma degradação da vida pública em que o PS se tornou o padrasto de todo o populismo", acusou.
No entanto, para Catarina Martins é "preciso constatar que esta triste telenovela da crise governamental é a menor das adversidades do país".
A maior dificuldade, continuou, é "um modelo de economia e de injustiça social que destrói Portugal", com "baixos salários e alta especulação", lamentando um modelo de economia "devorada pelo turismo, mesmo que quem o sirva já não tenha onde morar" e "onde nunca há regadio intensivo a mais, mesmo que a seca se agrave a cada ano que passa".
A líder do BE considerou que não foi "porque a negociação lhes tirava horas de sono que o PS recusou qualquer entendimento com a esquerda", acusando os socialistas de encenar "confrontos vazios com a direita", ao mesmo tempo que copia as políticas desses partidos.
Este "jogo de espelhos em que os avanços são sempre simbólicos e a vida concreta é sempre um recuo" é o maior perigo, na análise de Catarina Martins.
"Mesmo no confronto com a extrema-direita, na defesa de valores de dignidade e respeito, da igualdade e das liberdades, ao negar as condições concretas do salário, do serviço público, da habitação, ao fazer dos serviços secretos um misterioso joguete, ao propor restrições constitucionais perigosas, o PS está a contaminar todo o debate democrático e a estender a passadeira ao regresso dos piores fantasmas do passado", aponta.
A ainda líder do BE condenou, por isso, "quem quer convencer o pobre que a culpa da sua situação é do mais miserável, ou do imigrante, ou da mulher" e considerou que quem "proclama vitórias enquanto o povo sente a vida a andar para trás" está a alimentar "as ervas daninhas do ressentimento".
Na fita do tempo, Catarina Martins não deixou de fora a luta dos professores, referindo que "há quatro anos, António Costa virou o país" contra estes profissionais e ameaçou com a queda do Governo se os professores recuperassem o tempo de serviço, recordando ainda quando "António Costa ameaçou recorrer ao Tribunal Constitucional e a outros tribunais" quando o parlamento decidiu que não havia mais pagamentos ao Novo Banco antes de as suas contas serem certificadas.
"Demissão e tribunal, olhem para trás e lembrem-se do que foi a chantagem desde que a geringonça acabou em 2019. Só que, agora, uma boa parte da população está farta", enfatizou.
Voltaria a votar contra orçamento e não se arrepende “da coerência”
Catarina Martins defendeu que o partido "fez o que tinha a fazer e voltaria" a votar contra o Orçamento do Estado para 2022, apontando que os bloquistas não se arrependem "da coerência".
"Fizemos o que tínhamos de fazer e voltaríamos a fazer o mesmo enfrentamento com o Governo nos Orçamentos a propósito da saúde e dos direitos laborais", defendeu Catarina Martins.
No seu discurso de despedida na XIII Convenção Nacional do BE, no pavilhão do Casal Vistoso, em Lisboa, Catarina Martins recuou ao 'chumbo' do Orçamento do Estado para 2022, que levou o país a eleições legislativas antecipadas.
A coordenadora do BE afirmou que se vivem "tempos difíceis" salientando que não se estava a referir ao partido, apesar de reconhecer que "a derrota eleitoral do ano passado deixou feridas".
No entanto, garantiu: "Não nos arrependemos da coerência".
"Que ninguém se engane sobre quem somos e como somos: respeitamos quem tinha votado no Bloco e que, por medo da direita ou por preferir uma maioria absoluta, apoiou o PS há um ano; mas faremos sempre o mesmo que nos disserem para escolher entre uma conveniência partidária e o cuidado que a democracia deve ao SNS ou ao direito de quem trabalha", considerou.
Catarina Martins garantiu que o BE escolhe e continuará a escolher "a coerência e o compromisso com soluções que salvam vidas, que ajudam quem está doente, que dão ao pobre e ao remediado a garantia de que não deve ser cuidado nos nossos hospitais públicos de forma diferente da pessoa mais poderosa do mundo".
"E se assim fazemos é porque respeitamos sempre o nosso mandato. Temos um compromisso com o povo e é por isso que somos esquerda de confiança", acrescentou.
Catarina Martins apontou que é na coerência do partido "que se alicerça o crescimento" que disse já sentir na rua "e que até as sondagens já reconhecem".
"Se agora estamos a recuperar força é por levarmos o país a sério e levarmos a sério o compromisso de quem confiou em nós. Não cedemos à chantagem e não preciso de vos dizer como é importante que o povo tenha esta certeza de que aqui está gente que nem verga nem quebra", vincou.
Antes, a coordenadora do BE já tinha referido que "foi em nome" da coerência que o partido promoveu e assinou os acordos da geringonça, ajudando “a salvar o país da direita”.
"E não nos submetemos nunca à ideia peregrina de que bastaria um 'acordo de cavalheiros' para um compromisso de medidas: tem que haver honra e fidelidade aos acordos na política, mas o povo tem o direito de saber o que vai ser feito, quando e como, e isso é um acordo transparente para toda a gente conhecer", salientou.
Catarina Martins garantiu que o partido foi unitário contra o sectarismo e nunca deixará de o ser, querendo "toda a força da esquerda junta, porque não é demais para enfrentar a casta oligárquica que manda em Portugal".
Lembrando várias lutas e conquistas do partido nos últimos anos, Catarina Martins salientou que o Bloco revelou "escândalos financeiros", denunciou "a pirataria das privatizações e os banqueiros e CEOs que prejudicaram o país" e combateu "a corrupção, o compadrio e o clientelismo".
"E se agora nos dizem que é importante, pois lembrem-se que era o Bloco de Esquerda que Ricardo Salgado tratava como o seu inimigo e tinha toda a razão. É uma honra para nós termos mostrado que o crime é crime e que foram banqueiros quem assaltou os bancos", insistiu.
As "gerações não se atropelam", reforçam-se
A coordenadora bloquista, Catarina Martins, disse hoje, no seu discurso de despedida, que no BE as "gerações não se atropelam", mas "reforçam-se", recordando o legado dos fundadores do partido e de João Semedo.
"Sei bem que a camaradagem, a convicção, o debate franco, a luta ombro a ombro não se comemoram. Partilham-se, mas permitam-me que hoje vos diga o quão grata estou pelo privilégio de ter seguido convosco no caminho destes últimos 11 anos e pelo que mais virá", disse Catarina Martins, no último discurso enquanto coordenadora do BE, na XIII Convenção Nacional, em Lisboa.
Recordando a "enorme generosidade" de Francisco Louçã, que a antecedeu na liderança do partido, a coordenadora do BE enalteceu ainda Luís Fazenda e Fernando Rosas.
"De formas diversas, reinventaram a sua intervenção no Bloco e ensinaram-nos que as gerações não se atropelam nem se substituem, as gerações no BE reforçam-se, acrescentam-se", enfatizou, recordando ainda os ensinamentos que deixou o outro fundador do BE Miguel Portas.
Um dos mais orgulhos de Catarina Martins é, nas suas palavras, a promulgação da lei que despenaliza a morte medicamente assistida.
"Não é o único legado que nos deixa, longe disso, mas esta particular combinação de exigência e tolerância é a Lei João Semedo, e Portugal deve agradecer-lhe a generosidade com que se dedicou a esta causa como ao SNS até ao último dos seus dias", disse.