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Algarve: travão a barcos turísticos visto com bons olhos, mas sabe a pouco

Investigadores e empresários do setor de observação de cetáceos defendem medidas mais restritivas para proteger espécies. Estudo já identificou oito tipos de cetáceos na região, com o golfinho-comum e o golfinho-roaz em destaque.

Um golfinho-comum que foi observado pela equipa de investigadores do Centro de Ciências do Mar, no âmbito de um trabalho que pretende contabilizar as espécies de cetáceos presentes no Algarve
Um golfinho-comum que foi observado pela equipa de investigadores do Centro de Ciências do Mar, no âmbito de um trabalho que pretende contabilizar as espécies de cetáceos presentes no Algarve
Rui Peres dos Santos

O Algarve abre agora portas ao primeiro verão desde que o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) colocou um travão ao licenciamento de novas embarcações para a atividade de observação de cetáceos na região. No edital, em vigor desde dezembro, estabelece-se o limite no número exato de barcos já licenciados à data da sua publicação. Assim, são 124 as embarcações que estão autorizadas a levar turistas (e não só) em busca de golfinhos e baleias ao largo do Algarve. Só que, para quem dedica a sua vida à observação destas espécies, a medida vem tarde e sabe a pouco.

“O edital do ICNF era imprescindível para a região do Algarve. Durante anos foram licenciadas empresas marítimo-turísticas para observação de cetáceos sem que houvesse um estudo de capacidade de carga”, defende Rui Peres dos Santos, investigador do Centro de Ciências do Mar(CCMAR), integrado na Universidade do Algarve.

O biólogo está a desenvolver um estudo de observação de cetáceos no Farol do Cabo Santa Maria, em Faro, “para melhor compreender a abundância” destes animais na região. É certo que o edital do ICNF assegura que há 22 espécies de cetáceos no Algarve, mas esta lista “baseia-se em registos de avistamentos e arrojamentos”, o que significa que “muitas são raramente avistadas na região, por serem de águas mais profundas e outras nunca foram avistadas vivas”.

Desde outubro de 2021, Rui Peres dos Santos e a sua equipa já observaram oito espécies diferentes no Algarve, sendo as mais comuns os golfinhos comum e roaz. Avistaram também, com frequência, o golfinho riscado, a baleia comum e a anã e, “com alguma regularidade”, orcas e botos.

Destacamos a observação de uma baleia-sardinheira jovem a alimentar-se a duas milhas [cerca de três quilómetros] de Faro”, partilha ainda o investigador.

Agora, com este travão ao licenciamento de embarcações turísticas, o biólogo defende que há “ condições de poder efetuar um estudo de capacidade de carga e providenciar dados para a decisão de quantas embarcações devem efetivamente operar no Algarve”. O investigador assume que “eventualmente estarão até licenciadas demasiadas embarcações para a região”.

“Os números são bem expressivos se compararmos com os Açores, que licenciaram cerca de 45 embarcações de observação de cetáceos para 320 quilómetros de costa. No Algarve estão licenciadas 124 para 140 quilómetros”, alerta Rui Peres dos Santos.

Esta posição é partilhada por operadores do setor, ligados não só ao turismo, mas também à investigação e à conservação das espécies.

Empresas defendem limites e exigem mais controlo

É o caso de Sara Magalhães, bióloga marinha e investigadora, que há 18 anos fundou a empresa Mar Ilimitado, focada sobretudo em criar “uma plataforma privada e independente de recolha de dados sobre cetáceos”.

“[O edital] é uma medida há muito esperada e que, na minha opinião, já deveria ter sido tomada há vários anos, permitindo ter um desenvolvimento controlado”, afirma a investigadora, que considera que “a observação de cetáceos no Algarve demonstrou um grande potencial de crescimento nas últimas duas décadas, mas este não foi acompanhado de uma avaliação e gestão contínua e possíveis impactos nas populações de cetáceos”.

Também Alfredo Rodrigues, da Ocean Vibes Algarve, que criou em 2019, sublinha que a medida “já vem tarde”.

Portugal é o país da Europa com maior crescimento no turismo de observação de cetáceos e com um número muito superior de embarcações licenciadas. É quase inconcebível termos mais de 80 barcos autorizados para esta atividade entre Albufeira e Sagres sem qualquer estudo prévio de capacidade de carga que delimite o número adequado de embarcações para o número de animais na zona”, explica o biólogo marinho e investigador.

Rodrigo Clímaco, da Algarve Dolphin Lovers, uma pequena empresa familiar “que assim quer continuar”, vai mais longe e defende que “devemos ter a coragem de restringir de forma vincada para que não nos arrependamos mais tarde”.

“O ICNF tem que ter força para poder travar o crescimento irracional e as empresas têm que ter o discernimento exigido quando se trabalha com a natureza”, acrescenta Rodrigo, cuja empresa familiar “teve sempre o objetivo de oferecer experiências no oceano de forma a que as pessoas saíssem felizes da embarcação, e mais sensíveis em relação à natureza”.

Já André Dias, da WildWatch, “microempresa de ecoturismo marinho” a operar na região desde 2013, recebeu “com satisfação” esta limitação para novas licenças, pois nele vê “um sinal de esperança para a regulação do setor”.

Ainda assim, o empresário adianta que tem “alertado o ICNF para problemas com a observação de cetáceos na costa algarvia, com especial incidência na zona central, entre Lagos e Albufeira, onde se concentra o maior número de empresas e embarcações que desenvolvem esta atividade”.

Entre as situações denunciadas por André Dias está o “incumprimento generalizado das regras de observações de cetáceos e de segurança náutica por parte de muitos operadores” .

“O número de embarcações na proximidade de um grupo de cetáceos que não pode ultrapassar três embarcações e em muitos casos esse número é francamente ultrapassado”, descreve o empresário, referindo ainda que há operadores que “utilizam embarcações fora das zonas de navegação licenciadas”.

Para André Dias, é tempo de estudar os limites de embarcações como já se fez, por exemplo, nos Açores, e, “se for o caso, reduzir o seu número para garantir o bem-estar destes animais”. O responsável da WildWatch entende ainda que “as licenças de observação de cetáceos deveriam ter um custo anual que pudessem contribuir para o controlo e monitorização desta atividade”.

Encontros com orcas são um mistério por resolver

À semelhança do que se tem verificado, por exemplo, na zona de Sesimbra, também no Algarve se têm registado episódios de interações com orcas. À SIC Notícias, os quatro empresários relataram encontros, aos quais não colocam qualquer “rótulo”.

As orcas estão a interagir com embarcações, mas não a abalroar - ‘abalroar’ é o termo náutico equivalente a atropelar, pelo que não faz sentido”, explica à SIC Notícias Alfredo Rodrigues, adiantando que já registou “uma interação com orcas durante uma saída científica, sem turistas a bordo” e que estas estão a “ocorrer por toda a Península Ibérica”.

Ainda que se desconheça a motivação por detrás destes episódios, adianta o investigador Rui Peres dos Santos, estas orcas que pertencem à população ibérica constam “na lista vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza como criticamente ameaçadas”. O projeto de investigação que lidera está, por isso, “em contacto direto com a Autoridade Marítima Nacional para informar aquando da observação de orcas na área de estudo, para poder alertar todos os navegadores nas proximidades”, ainda que não tenha “qualquer financiamento e seja fruto da atividade científica do grupo de investigação R2C2, que pertence ao CCMAR”.

Sara Magalhães também já experienciou “um encontro com orcas que incluiu contacto físico com a embarcação”, num comportamento que considerou “exploratório”.

“Assim que nos apercebemos, deixámos o grupo, minimizando a possibilidade dos animais criarem mais interesse na embarcação. Uma embarcação semi-rígida rápida como a nossa tem a capacidade de se retirar rapidamente do local em caso de interação negativa, e não tem partes móveis frágeis, ao contrário dos veleiros que têm sido o principal alvo da atenção destes animais e cujo resultado tem sido bastante complexo e dramático”, acrescenta a bióloga marinha.

No verão de 2021, André Dias e Rodrigo Clímaco tiveram experiências semelhantes.

“Em junho, tivemos um avistamento de um grupo de sete orcas ao largo de Ferragudo e, pela primeira vez, tiveram uma interação com a embarcação demonstrando uma alteração do seu comportamento face a avistamentos de anos anteriores. Um juvenil tocou na embarcação”, recorda André Dias, reportando o caso ao ICNF, que no mês seguinte emitiu uma recomendação para todas as empresas.

Rodrigo Clímaco já contabiliza “vários avistamentos de orcas”, mas apenas uma interação.

“Aproximaram-se do barco três indivíduos - mãe, juvenil e uma cria. A progenitora cabeceou o leme e, notoriamente, estava a ensinar a prol a fazê-lo. No entanto, não o sentimos como sendo um comportamento agressivo, não podemos esquecer que são animais que pesam toneladas e qualquer pequeno toque parece algo enorme”, destaca o empresário, salientando que “até que se perceba o que é realmente este comportamento, devemos considerá-lo como uma interação sem lhe colocar um rótulo positivo ou negativo”.

Um golfinho-roaz avistado pela equipa de investigadores que está a estudar os tipos de cetáceos presentes ao largo do Algarve
Rui Peres dos Santos

Uma atividade que pode ser “tanto uma oportunidade como uma ameaça”

Olhando para o todo, fica a questão: é possível atingir um equilíbrio entre o setor do turismo e a preservação das espécies? Também aqui se encontra unanimidade, sempre com alguma cautela.

“É um paradigma: esta atividade pode representar tanto uma oportunidade como uma ameaça, dependendo da forma como for levada a cabo e gerida”, sublinha Sara Magalhães, deixando claro que para ser algo positivo é preciso obter um “conhecimento profundo e uma monitorização permanente das populações de cetáceos, do seu ecossistema e da atividade em si, algo que neste momento ainda não acontece”.

Para a investigadora, tem se verificado “um crescente interesse na chamada economia-azul, mas que não está a ser acompanhado de uma ‘gestão-azul’, integrada, que não olhe apenas para a economia, mas sim para os recursos e o seu equilíbrio”.

“Por isso arriscaria afirmar que neste momento a ameaça pode ser superior à oportunidade”, alerta.

André Dias reconhece que “a atividade tem impacto no bem-estar dos animais, mas a sensibilização promovida e possibilitada por estes encontros é um contributo importante para a sua conservação e do oceano no geral”. No período pré-pandemia, o biólogo marinho “transportava entre cinco a seis mil passageiros por ano”, acabando por reduzir a capacidade devido à Covid-19 para cerca de mil turistas. Este ano, espera “voltar para o nível de atividade” anterior à pandemia que parou o mundo.

Rodrigo Clímaco acredita que esse equilíbrio pode ser atingido desde que a tutela tenha força para “restringir” o crescimento “irracional” da atividade. Como empresa familiar de pequenas dimensões, a Algarve Dolphin Lovers faz “duas saídas diárias no pico do verão, uma saída por dia no início e no fim da estação e uma saída por semana no outono e inverno”.

Também Alfredo Rodrigues, que com a Ocean Vibes Algarve faz entre 250 a 350 saídas por ano, vê como possível esse entendimento entre turismo e conservação da natureza. Trabalham “o ano inteiro até três saídas diárias, quando o vento permite”, sendo que no ano passado levou “cerca de 3100 clientes a ver cetáceos em Faro”.

“Quando as pessoas vêm estes animais na natureza ficam muito mais sensíveis a temas de conservação, sobretudo se os guias forem formados na área ou tiverem bons conhecimentos, e conseguirem transmitir não só empatia pelas espécies, mas também dados atuais sobre os problemas que enfrentam”, conclui o investigador e biólogo marinho.

Para Rui Peres dos Santos, o caminho passa “não só pelo aumento do conhecimento sobre as espécies de cetáceos na região algarvia, mas também pela consciencialização do sector dos operadores turísticos”.

“É possível harmonizar a observação de cetáceos preservando o bem-estar das espécies, quer através da eventual diminuição das licenças, quer reduzindo o número de saídas ou fazendo, com a ajuda dos vigias, uma distribuição mais equitativa das embarcações pelos diferentes grupos na zona de observação”, remata o investigador.