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Cem anos de Mário Soares, o homem que foi quase tudo

Combatente antifascista no Estado Novo. Construtor da democracia no pós-25 de Abril. Primeiro-ministro, primeiro. Presidente da República, depois. Tinha como máxima o lema: "Só é vencido quem desiste de lutar.” Faz, este sábado, um século desde o seu nascimento.

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A chegada a Vilar Formoso, três dias depois da revolução, põe fim a um longo período que fez Mário Soares passar 12 vezes pela prisão.

“O Aljube era horrível, parecia a Idade Média. Parecia, mas, para mim, era mais menos difícil. Porque, no Aljube, havia uma rede ao meio, uma grade ao meio, e nós podíamos tocar-lhe nas mãos. Podíamos dar-lhe um beijo através da grade. Em Caxias, não”, conta Isabel Soares, filha do socialista.

Depois da revolução, lidera o 25 de Novembro e ajuda a consolidar a democracia.

Os abraços Álvaro Cunhal fazem parte do passado e Soares decide começar a caminhar sozinho.

“Mário Soares, nesse momento histórico do país, foi, do ponto de vista civil, o grande líder político do 25 de Novembro. Mário Soares e o Partido Socialista”, aponta Pedro Nuno Santos, secretário-geral do PS. “A direita portuguesa, que se tenta apropriar do 25 de Novembro, fez muito pouco ou quase nada pelo 25 de Novembro.”

No entanto, lembra Pedro Nuno Santos, “quando Mário Soares quer identificar as cinco principais datas do processo que se seguiu a Abril, ele não cita o 25 de Novembro”.

“O propósito fundamental dele foi naturalizar a democracia em Portugal, normalizar a democracia em Portugal", para a qual o Salazarismo dizia que os portugueses “não estavam preparados”, aponta José Manuel dos Santos, antigo assessor cultural de Mário Soares.

“A economia portuguesa tinha sido pulverizada no dia 11 de março de 1975. Nos dias que se seguiram, não havia autoridade do Estado, não havia autoridade política. Havia ocupações, a desordem, estava instalada”, afirma Maria João Avillez, autora de “A História Contada” da sobras de Mário Soares.

Soares ajuda a definir as funções de um primeiro-ministro no novo regime democrático, lança as bases do Estado Social, reconstrói a economia do país e põe um ponto final no “orgulhosamente sós” de Salazar, quando subscreve os primeiros passos da jovem democracia no caminho europeu.

Um período mais conturbado

Quando corria o ano de 1986, as coisas já não corriam da melhor forma para o socialista. A comitiva de Mário Soares foi agredida na Marinha Grande – e esse nem era o maior dos seus problemas.

“O Expresso estampou que ele tinha entre 7 e 8% de hipóteses na candidatura [às presidenciais] - os outros todos estavam muito mais altos”, recorda Maria João Avillez.

“Ele viu ali adrenalina e dá-me ideia que lhe passou pela cabeça: "Eu vou virar isto tudo e eu vou ganhar. Sou eu que vou ganhar.”

A Presidência

E ganhou, depois de uma segunda volta em que contou com o apoio do rival dos últimos anos.

“Ele era muito popular e as pessoas gostavam muito dele. Era um bonacheirão. bem-disposto, engraçado, sabia falar com as pessoas”, descreve Maria João Avillez.

Soares foi um dos presidentes mais populares de sempre, apesar de ter herdado um país dividido, depois da primeira eleição presidencial. Da segunda, guarda, até hoje, o maior número de votos que algum Chefe de Estado já teve em Portugal. Começava o magistério de interferência.

“Limitou-se, a partir de uma certa altura - em nome daquilo que ele chamava os desígnios nacionais -, a chamar a atenção para aquilo que achava - do ponto de vista do país, e nunca do ponto de vista de qualquer política ou qualquer confronto - que estava mal e tinha que ser mudado”, sublinha José Manuel dos Santos, antigo assessor cultural de Mário Soares.

“O professor Cavaco Silva deu cabo - peço desculpa pela expressão - do bloco central”, repara Maria João Avillez.

Aos 80 anos, Mário Soares parecia querer pôr um ponto final na política ativa. “Basta. Nem política partidária, nem exercício de cargos políticos. Basta”, declarou então.

Mas não bastou. Contra a maioria dos que tinha à sua volta, abre mais uma batalha e candidata-se, pela terceira vez, a Belém, em 2006.

“A minha mãe, o meu irmão, eu própria, aqueles netos que já tinham voz, nessa altura, fomos todos radicalmente contra”, conta Isabel Soares. “Mas, se ele avançasse, nós estaríamos ao lado dele, como estivemos sempre toda a vida.”

A lealdade com Sócrates

Soares cede a Sócrates. O então secretário-geral do Partido Socialista convenceu-o a concorrer pela terceira vez à Presidência da República. Como diretor jovem de campanha, tem o líder da Juventude Socialista, que haveria de chegar a secretário-geral: Pedro Nuno Santos.

“Era impossível ele não voltar a intervir politicamente. Foi um combate difícil. Nós tivemos um mau resultado, tivemos 14%. Mas nunca me vou esquecer de que, no dia seguinte a essa derrota, a pessoa mais positiva, mais otimista, mais alegre de todos aqueles que tinham estado diretamente envolvidos naquela campanha era mesmo Mário Soares”, recorda.

Pedro Nuno Santos não vê um erro na última candidatura de Soares, mas, uns anos depois, é um dos que o puxa para outra luta: contra a ‘troika’, contra Passos Coelho, e novamente contra Cavaco, então Chefe de Estado.

“Demita-se, uma vez que não cumpre a Constituição. Não desgrace mais a Portugal, sr. Presidente da República”, disse então Soares a Cavaco Silva.

“Na altura da vida em que estava, não precisava de se inquietar. Mas, na realidade, era impossível pedir-lhe isso”, nota Pedro Nuno Santos.

“Aqueles anos foram anos muito duros para os portugueses e foi na sequência disso que ele organizou dois encontros na Aula Magna, para promover de forma clara e assumida que a esquerda fizesse pontos entre si”, diz o atual líder do PS. “Desse ponto de vista, ele foi um percursor daquilo que veio a acontecer em 2015.”

Mário Soares vai ainda à luta uma última vez. Não deixa cair o amigo José Sócrates e é visita assídua na prisão de Évora.

"Ele acreditou sempre na inocência de José Sócrates”, recorda a filha, Isabel Soares. “Defendeu-o até ao final da sua vida.”

“Foi sempre um homem que, defendendo os ideais, em muitos momentos em discordância com uma grande parte do Partido Socialista, foi sempre muito apegado ao PS, dos seus dos seus dirigentes e sempre muito solidário”, aponta Pedro Nuno Santos. “É alguém que tem uma perspetiva de camaradagem que é muito importante e que só diz bem dele.”

"O maior político português"

Depois de 92 anos de batalha, Soares desiste de lutar, menos de dois anos depois da morte da sua maior aliada – a mulher, Maria Barroso.

Por motivos políticos, para a História fica o homem que foi quase tudo.

“Ele definia-se a si próprio como um político”, refere José Manuel dos Santos.

“Foi um dos construtores do nosso Estado de Direito. Foi um dos maiores obreiros do facto de estarmos hoje em democracia. É indiscutível”, diz Maria João Avillez.

“Teve um papel extraordinário, crucial em momentos muito importantes do nosso país”, conclui Pedro Nuno Santos. “Mário Soares é o maior político português.”