Naquela sala de teatro, numa das zonas históricas de Kyiv, o público chorava, ria e prestava atenção ao que se passava. O público, muito variado, vestia as melhores roupas que tinha no armário, fiquei impressionada pelo aparato geral dos espectadores, todos muito arranjados e bem-cheirosos. Não me lembrava de ser assim em Lisboa, onde de todas as vezes que fui ao teatro, vi as pessoas com as mesmas roupas que horas antes elas tinham estado a trabalhar ou ido ao supermercado. As pessoas costumam reagir com espanto ao saberem que os ucranianos, apesar de tudo, continuam a ter uma vida relativamente normal.
Parece-me que quem está de fora imagina que aqui as pessoas estão sempre taciturnas, em depressão. Que o clima é pesado e o ambiente escuro. Mas não é bem assim. Obviamente que a guerra está sempre presente como pano de fundo, mas tudo funciona. Os transportes públicos, as escolas, os hospitais, os correios. Os adolescentes fumam às escondidas dos pais, ouvem hip hop e vestem roupas largas. Os pais resmungam nos grupos de “whatsapp” da escola dos filhos. As famílias fazem obras em casa, planeiam férias. Os cafés, pelo menos nas grandes cidades, estão cheios de gente, assim como os espaços de concertos e as salas de teatro.
Quando fui, nessa vez, ao teatro, não fazia a menor ideia que ia ver um espectáculo sobre o tema da guerra. Sabia que ia ver uma peça de teatro chamada “Comediantes” e por sugestão do título esperava algo mais leve. Mas assim que começou a peça, deparei-me com a história de uma família - pai, mãe, filha e avô - que, por um lado, vive com muitas dificuldades económicas provocadas pela guerra e, por outro, tenta conviver com a constante dor e preocupação de ter um dos membros da família na linha da frente, o filho mais novo.
Não vou adiantar muito neste texto, para ouvirem o episódio onde falo com dois dos atores, o avô e a filha. O primeiro, Bohdan Beniuk, um experiente e conceituado artista ucraniano, diretor do Teatro em que o espectáculo está em cena, contou-me o porquê de o teatro, e a arte no geral, serem cruciais para a sobrevivência de um país em guerra.
“É importante que se encontre a ordem na própria casa para que depois, por entre os povos que já resolveram os problemas internos, nós também possamos ser vistos como um povo individual, que não é semelhante aos russos. Porque isso era um problema recorrente. Quando íamos para o estrangeiro, toda a gente dizia que a Ucrânia era a Rússia. E toda a gente dizia “russian, russian” ainda que tu pudesses dizer três vezes que não eras russo, ninguém se importava. Tínhamos que andar a provar, a partir dos anos 1990, depois de a Ucrânia se ter tornado independente, o que é a Ucrânia. E foi apenas a grande guerra que abriu os olhos ao mundo inteiro e as pessoas viram que há um país que empunhou as armas contra a Rússia.”
A mais nova do grupo de atores que participam neste espectáculo, Darya Protsenko, terminou o curso de interpretação recentemente. Metade foi passada durante a pandemia do coronavírus e a outra metade já em guerra. Apesar de tudo, a jovem atriz está otimista sobre o futuro: “Nós, os ucranianos, somos muito fortes, cheios de luz e estamos preparados para tudo. A guerra, na verdade, não dá cabo da criatividade, mas abre novas temáticas.”
Este é o quarto episódio do Manual de Sobrevivência, um podcast narrativo sobre o dia a dia num país em guerra. Tem sonoplastia de João Luis Amorim e a arte gráfica é de Tiago Pereira Santos. As dobragens são de Bárbara Lima, Luís Manso, Sílvia Lima Rato, Mariana Xavier e Pedro Miguel Costa. A coordenação é de Joana Beleza. A direção é de Ricardo Costa. Eu sou a Iryna Shev e no próximo episódio vou levar-vos numa viagem.
* O Expresso adota a grafia Kiev, mas a autora pede que seja usado Kyiv