Investigação SIC

Um flagelo crescente: por dentro do submundo das drogas sintéticas nos Açores

O flagelo das substâncias sintéticas atinge, sobretudo, populações com menos rendimento e níveis de escolaridade mais baixos, como em Rabo de Peixe. Nos Açores, mora a taxa de risco de pobreza mais elevada do país, que afeta um em cada quatro habitantes. E, desde a pandemia, as drogas sintéticas já se propagaram por toda a ilha.

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As drogas sintéticas são um pesadelo crescente na ilha de São Miguel, nos Açores. A mais recente Investigação SIC mergulhou no submundo destas novas drogas que provocam graves surtos psicóticos, alucinações e lesões cerebrais por vezes irreversíveis. 

A câmara da SIC não é bem-vinda ao principal local de consumo de droga, em Rabo de Peixe. A agressividade e a violência são traços comuns entre quem consome drogas sintéticas.  

"Como são drogas perturbadoras, provocam delírios e paranoias, muitas vezes o adicto ataca o familiar ou as pessoas que estão nas proximidades, não com o sentido de o atacar, mas porque pensa que está a defender-se", explica à SIC Suzete Frias, diretora-geral da Associação Arrisca. 

Estas drogas são mais baratas e acessíveis do que as drogas tradicionais, mas provocam um estado de desorganização mental ainda mais grave. 

Na última década, alteraram o paradigma dos consumos na ilha: 

"São 60/70 vezes mais potentes que as tradicionais. Surgiram, ultimamente, sete opioides novos e um deles é 140 vezes mais potente do que a morfina", refere Suzete Frias. 

Surtos psicóticos são cada vez mais frequentes

Médico psiquiatra no Hospital de Ponta Delgada, João Mendes Coelho admite que as alucinações e os surtos psicóticos são cada vez mais frequentes no serviço de urgências. Admite, no entanto, que "não há tratamento farmacológico para estas novas drogas". 

O flagelo das substâncias sintéticas atinge, sobretudo, populações com menos rendimento e níveis de escolaridade mais baixos, como em Rabo de Peixe. 

Nos Açores, mora a taxa de risco de pobreza mais elevada do país, que afeta um em cada quatro habitantes. E, desde a pandemia, as drogas sintéticas já se propagaram por toda a ilha. 

O tráfico em plena luz do dia em várias ruas deixou de ter vergonha. 

Rafael, por exemplo, é só mais uma vítima. Todos os dias à mesma hora espera a chegada da metadona. Faz vários quilómetros a pé para evitar consumir heroína, mas das drogas sintéticas não se consegue livrar. 

Quando falava com a equipa da SIC, o pai de Rafel chega e interrompe a entrevista porque tem no bolso o que o filho mais deseja. 

"Muita gente diz ‘ah tu vais buscar droga para o teu filho’ e eu digo-lhe a verdade, não vou estar a mentir. O que eu vou buscar, mas não digo onde vou buscar, mas o que eu vou buscar é apenas para consumo próprio, para ele não roubar e ninguém lhe fazer mal”, justifica o progenitor. 

Rafael vive sozinho, passa noites inteiras sem conseguir dormir. Precisa, no mínimo, de 15 euros diários só para alimentar o vício das sintéticas. Com o pai desempregado, as funções cognitivas de Rafael já entraram em declínio. 

Pesca é o ganha-pão de muitos açorianos

Já Nelson saiu da prisão há menos de um ano depois de sete anos de reclusão por tráfico de droga. A metadona e o trabalho na pesca deram-lhe nova oportunidade, mas o preconceito não ajuda.  

Oitenta por cento dos beneficiários do Rendimento Social de Inserção nos Açores estão em São Miguel. A pesca continua a ser um dos principais setores, mas dizem que já teve melhores dias e enfrenta o risco de falência. 

Quem vive do mar avisa ser urgente a ativação do ‘Fundo Pesca’ para compensar os dias sem trabalho.  

De acordo com o Instituto Nacional de Estatística, a taxa de desemprego nos Açores atingiu em 2024 a melhor cifra dos últimos 16 anos: 5,6%, impulsionada pelo turismo. 

Muitas substâncias não integram Lei da Droga

Foi o terceiro ano consecutivo de recordes, com mais de quatro milhões (4.3) de dormidas nas ilhas também já conhecidas como uma das principais rotas do tráfico internacional. 

As substâncias psicoativas, produzidas na China e na Índia, são depois empacotadas, sobretudo no norte da europa, até chegarem à porta de casa. 

Parte significativa destas substâncias, e até as mais prevalentes em São Miguel, não integram ainda a Lei da Droga. Isto significa que não constam das tabelas da Lei de Combate à Droga, onde estão elencadas as substâncias proibidas, e, assim, são vendidas como qualquer outro produto normal. 

Nos últimos 25 anos, mais de mil novas substâncias psicoativas foram sinalizadas no espaço europeu, das quais só cerca de 900 constam nas tabelas. As Nações Unidas alertaram para o aumento do consumo destas drogas sintéticas em vários países, incluindo Portugal. 

A Polícia Judiciária admite que o país possa ser usado como ponto de transformação e de passagem de drogas sintéticas. O projeto para criminalizar as novas substâncias psicoativas deu entrada na Assembleia da República em dezembro e ainda aguarda luz verde. 

Governo Regional cortou apoio a principal associação dos Açores

A carrinha da Associação Arrisca, principal instituição de combate às dependências, percorre toda a ilha. Acompanha e trata centenas de pessoas com comportamentos aditivos e dependências, doenças mentais e casos graves de exclusão social. 

Devido às sintéticas, os consumos na ilha aumentaram e os financiamentos públicos e privados da Arrisca já não conseguem acompanhar. Este ano, houve novo corte anunciado pelo Governo Regional.  

As listas de espera vão aumentar, avisa a associação, e os problemas podem agravar-se. 

Ao contrário do continente, nos Açores não há salas de consumo assistido. "Maria" consumiu na rua durante 19 anoseperdeu, entretanto, a guarda da filha recém-nascida. 

"Consumi durante a gravidez, mas depois ela nasceu e vi que não era correto estar a consumir e ela seria dada para a adoção e aí parei. Percebi que a vida da minha filha é mais importante do que a droga", conta à SIC. 

Há oito meses sem consumir, “Maria” visita todos os dias a filha na instituição. Em breve, e sem recaídas, poderá levá-la de volta para casa, já que os exames médicos confirmam que mudou de vida. 

Ficha técnica

  • Jornalista: Pedro Freitas
  • Repórter de Imagem: Filipe Melo
  • Edição de imagem: Ricardo Tenreiro
  • Grafismo: Isabel Cruz
  • Produção: Cátia Martins
  • Coordenação: Luís Garriapa

Investigação SIC: Conte-nos o que merece ser denunciado através do email investigacao@sic.pt.