Sou dos que pensam que o domínio (industrial e comercial) dos filmes de super-heróis, sustentado por um marketing pouco disponível para a diversidade da produção cinematográfica (a começar pela que provém dos EUA), tem contribuído para o empobrecimento da relação de muitos espectadores (sobretudo os mais jovens) com essa mesma diversidade.
Dizê-lo, não é exactamente uma "tese", antes um reconhecimento quotidiano sustentado por muitos exemplos reveladores (mesmo quando parecem não passar de episódios mais ou menos anedóticos). Exemplo? O esquecimento da trajectória das estrelas da actualidade. Ou seja, e para nos ficarmos por um exemplo rudimentar: quem é Robert Downey Jr.?
A resposta mais forte (entenda-se: com mais poder mediático e normativo) está no site IMDb: Robert Downey Jr. é o protagonista de "Homem de Ferro". Aliás, nos destaques da sua biografia, os títulos escolhidos, além dessa produção de 2008, são "Sherlock Holmes" (2009), "Homem de Ferro 3" (2013) e "Vingadores: Endgame" (2019).
É verdade que não posso esconder que a linha de aventuras de super-heróis em que Robert Downey Jr. tem surgido me parece ser um domínio criativo cada vez mais repetitivo e monótono, incapaz de assumir a nobre herança de contar histórias que o classicismo de Hollywood contém. Mas o que está em causa não é um qualquer juízo de valor. É, isso sim, o facto de o historial de tão talentoso actor ser reduzido, não a qualquer apreciação das suas qualidades, mas apenas aos filmes que contabilizam mais milhões de dólares nas bilheteiras… Como se conhecer o cinema fosse um exercício mecânico de contabilidade…
Afinal de contas, entre os espectadores que "confundem" Robert Downey Jr. com a sua carapaça de ferro, quantos sabem que ele começou por se distinguir em "A Última Viagem em Beverly Hills" (1987), de Marek Kanievska, tendo como base o romance "Less than Zero", de Bret Easton Ellis? Ou que a sua notável composição em "Chaplin" (1992), de Richard Attenborough, lhe valeu uma nomeação para o Óscar de melhor actor? Ou que as suas qualidades como cantor estão expressas em "O Detective Cantor" (2003), de Keith Gordon, misto de policial e musical inspirado na série televisiva britânica do genial Dennis Potter? Ou ainda que a sua versatilidade está bem expressa em títulos mas recentes e tão admiráveis como "Boa Noite, e Boa Sorte" (2005), de e com George Clooney, "Fur - Um Retrato Imaginário de Diana Arbus" (2006), contracenando com Nicole Kidman sob a direcção de Steven Sheinberg, ou "Zodiac" (2007), de David Fincher.
O que está em causa não é apenas o fascinante conjunto de singularidades criativas que tais filmes exibem — é sobretudo o seu "apagamento" da memória colectiva, favorecendo uma cultura que tem como única referência de actualidade, não as especificidades dos filmes, mas as campanhas promocionais mais fortes.
Permito-me, por isso, terminar com uma sugestão: a descoberta do documentário "Sr." (2022), de Chris Smith, disponível na Netflix (trailer aqui em baixo). Aí encontramos Robert Downey Jr. em convívio com o pai, Robert Downey Sr., figura marcante da "contra-cultura" americana dos anos 1960/70 — é um filme de emoções invulgares e, à sua maneira, uma singela lição de cinema.