Desporto

Nacho, Vilda e Rubiales: o renascer de um escândalo no futebol feminino

“O que precisas é de um bom homem”. O machismo, refletido em frases como esta, vive há décadas no futebol. O beijo de Rubiales à jogadora Jenni Hermoso, que abalou o desporto em Espanha, é apenas a ponta do icebergue.

Ignacio Quereda, Jorge Vilda e Luis Rubiales
Ignacio Quereda, Jorge Vilda e Luis Rubiales
Inês M. Borges

“Ganhámos o Mundial, mas não estamos a falar muito disso, pois aconteceram coisas que não gostaria". As palavras de Aitana Bonmatí, melhor jogadora do ano para a UEFA, refletem a frustração e também a consciência das atletas da seleção feminina espanhola. E elas já avisaram: não voltam a jogar até tudo mudar.

No centro do polémica está Luis Rubiales, que tem estampado jornais e noticiários em todo o mundo desde o dia 20 de agosto, quando a Espanha bateu a Inglaterra na final do Mundial. O beijo do dirigente a uma jogadora, ainda no relvado, lançou para segundo plano o feito daquela equipa, que subiu ao topo pela primeira vez, repetindo o que, entre os homens, só a turma de Xavi e Iniesta conseguiu.

Mas, como disse Aitana, “não devemos permitir o abuso de poder numa relação laboral, nem faltas de respeito”. Ou, como realçou Sarina Wiegman, a selecionadora de Inglaterra eleita melhor treinadora do ano, “ainda há um longo caminho a ser percorrido no futebol feminino e na sociedade”.

Na gala da UEFA, as mulheres escolheram usar o seu momento de coroação máxima pelo próprio trabalho, para falar de uma causa maior. Não podemos fazer diferente. Até porque o beijo de Rubiales é apenas a ponta do icebergue.

A Real Federação Espanhola de Futebol (RFEF), presidida por Rubiales, que não se demitiu mas foi suspenso por 90 dias pela FIFA, tem um histórico de polémicas com mais anos do que as atletas que venceram o Mundial na Austrália. É preciso regressar a 1988.

O “reinado” de Ignacio Quereda

Quando se fala em polémicas em torno do futebol feminino espanhol, há um nome incontornável: Ignacio Quereda Laviña, o técnico que comandou a seleção durante quase três décadas, entre 1988 e 2015.

Ignacio Quereda
Matthew Lewis - FIFA

Durante os 27 anos em que tomou as rédeas da equipa, Nacho – como também é conhecido no país vizinho – acumulou queixas e relatos verdadeiramente preocupantes de jogadoras que sofreram às suas mãos.

O declínio do selecionador começou, de forma mais acentuada, após o Mundial de futebol feminino de 2015, disputado no Canadá.

O fracasso da “La Roja” na sua primeira presença em Campeonatos do Mundo – as comandadas de Quereda foram eliminadas na fase de grupos – conduziu a situação do técnico a um ponto insustentável.

Após a prova, o verniz estalou e 23 jogadoras decidiram assinar um comunicado a pedir a saída de Ignacio Quereda.

Na época, as atletas alegaram falta de profissionalismo, falta de preparação para o Mundial e escassa análise dos rivais que viriam a enfrentar durante o torneio.

"Acreditamos que chegou ao fim uma etapa e que precisamos de uma mudança. Foi isso que transmitimos ao treinador e à equipa técnica. Se perdermos a confiança e não formos capazes de chegar a um grupo, é difícil atingir os objetivos", declararam as atletas, no texto enviado à RFEF

O que parecia ser o fim era apenas o início de um escândalo que viria a abalar o futebol espanhol.

“Não as chames de miúdas, chama-as de futebolistas”

Seis anos após a saída de Quereda do cargo de selecionador, a jornalista espanhola Danae Boronat lançou o livro “No las llames chicas, llámalas futebolistas” (“Não as chames de miúdas, chama-as de futebolistas”, em português), que retrata a luta das mulheres pela igualdade no futebol.

A autora reuniu testemunhos de algumas das maiores futebolistas espanholas da história, tais como Vero Boquete, Concepción Sánchez, Sonia Bermúdez, Mar Prieto, Laura del Río, Alicia Fuentes e ainda da atualidade, como, por exemplo, Jenni Hermoso, Alexia Putellas, Irene Paredes e Vicky Losada.

Danae Boronat com o seu livro “No las llames chicas, llámalas futebolistas”
Reprdução/Twitter Danae Boronat

Várias passagens do livro visam Nacho Quereda. Uma delas, por exemplo, conta um episódio relatado por Alicia Fuentes, uma antiga internacional espanhola, que aconteceu quando a atleta era ainda menor de idade.

“Estávamos sozinhos no elevador e [Quereda] deu-me um beliscão no rabo. Não soube como reagir. Tinha 17 anos, era muito tímida, ainda não tinha saído de casa. Como vinha de uma aldeia, ele dizia-me: ”Sabes como os galos fecundam as galinhas?" E beliscava-me", relata a jogadora, que é citada pelo jornal El Mundo.

Este testemunho, no entanto, é apenas um de muitos. Ainhoa Tirapu, antiga guardiã da baliza espanhola, conta que um dia o ex-selecionador lhe disse para colocar “o decote para a frente”.

"Hoje não o teria permitido, mas naquela época aguentavam-se aquelas coisas", acrescenta Ainhoa.

“O que precisas é de um bom homem”

Os comentários de cariz sexual não eram os únicos que incomodavam as atletas. Vicky Lousada, atual jogadora dos ingleses do Brighton, conta que Quereda chegou a proferir discursos homofóbicos:

"'Quero erradicar o lesbianismo e os maus hábitos!', dizia ele. Houve uma ocasião que algumas jogadoras assumiram ser lésbicas e deu a entender que se expuséssemos a orientação sexual publicamente haveria consequências desportivas".

Várias outras futebolistas espanholas relatam, ao longo da obra, que muitas vezes o treinador não preparava devidamente as sessões de trabalho e que chegava a maltratar psicologicamente algumas integrantes da seleção.

“Esta precisa é que lhe metam pimenta no c...” ou “o que precisas é de um bom homem” são algumas das frases que terão sido ditas por Quereda e citadas pelas atletas no livro publicado há três anos.

“Romper o silêncio”: o documentário que denuncia abusos

Mais tarde nesse ano, a plataforma Movistar+ lançou um documentário intitulado de “Romper el silencio” (Romper o silêncio) que, à semelhança do livro, compilou testemunhos de jogadoras que alinharam pela “La Roja” sobre as inúmeras atitudes misóginas e machistas de Quereda ao longo de todos os anos na equipa.

No documentário, Vicky Losada revela que as futebolistas “tinham medo” e “não queriam passar por ele no corredor”. A jogadora - a primeira a marcar um golo pela Espanha num Mundial feminino - e várias outras vincam que o ex-treinador exercia um controlo, por vezes excessivo, sobre elas: dizem que, durante as concentrações, Quereda entrava nos quartos sem autorização e, por vezes, revistava os seus sacos das compras.

Losada relata que, quando foram eliminadas do Mundial em 2015, o técnico culpou-a por um erro e disse-lhe que não passava de “uma jogadora medíocre que nunca iria conseguir nada”.

Também é possível assistir ao testemunho de Maria Teresa Andreu, responsável pelo futebol feminino na federação espanhola entre 1981 e 1999, que explica que Quereda “gostava de gritar e humilhar” as jogadoras diante do grupo.

No documentário, as jogadoras revelam que era comum ouvirem comentários como “Cuida-te, estás gorda”.

Para além dos testemunho das futebolistas, “Romper el silencio” revela, entre gritos, desprezo, puxões de orelha e pancadas na cabeça, vídeos que mostram atitudes agressivas por parte de Quereda.

Jorge Vilda, o sucessor do trono

Depois do reinado polémico de Ignacio Quereda, a RFEF decidiu refrescar o comando técnico da seleção, e a escolha recaiu sobre Jorge Vilda, filho de Ángel Vilda, um preparador físico do mítico Johan Cruijff.

Vilda, de 42 anos, iniciou a carreira como adjunto precisamente do seu pai, na seleção feminina de sub-17, herdando o cargo em 2010, com 29 anos. Até 2015, o técnico passou por vários escalões inferiores de “La Roja”, tendo conquistado um Campeonato da Europa de sub-19 e vários torneios internacionais.

Com a polémica de Quereda ainda bem viva, o novo selecionador teve a árdua tarefa de renovar uma seleção ferida após o Mundial de 2015. E foi aí que começaram os primeiros problemas de Vilda no cargo.

Verónica Boquete, identificada com uma das líderes da revolta contra Quereda, nunca mais foi chamada para representar a seleção, apesar ter mostrado rendimento no seu clube na Liga dos Campeões.

“É evidente que gostaria de ter tido outra final, não por agradecimento pelo meu passado, mas sim pelo meu desempenho atual e pelo mérito desportivo”, disse a jogadora galega numa carta aberta, após ter ficado fora das eleitas para o Campeonato Europeu de 2017

2022, o ano em que a polémica renasceu

O ambiente na seleção acalmou, até que em setembro de 2022, a tempestade voltou a pairar sobre a equipa.

15 jogadoras uniram-se e enviaram um email para a federação a pedir a demissão de Jorge Vilda, justificando que o treinador não tinha potencializado o rendimento das atletas, impedindo a seleção de atingir o nível de equipas como Inglaterra, Países Baixos, Canadá ou Estados Unidos.

Rubiales não se mostrou disposto a demiti-lo do cargo, afastando a tese que haveria uma crise no seio da equipa feminina.

“Não há caso. O Jorge é o selecionador de agora e será no Mundial. O Jorge pode até sair desta situação reforçado. E blindado. Não são as jogadoras que escolhem o treinador, mas sim o presidente”, reagiu a federação, com a intenção de passar a mensagem de que não iria aceder ao pedido das internacionais espanholas.

Perante este caso, Rubiales colocou-se numa situação contraditória, já que no final da temporada 2020/21, as jogadoras do Barcelona pediram a demissão do treinador Lluís Cortés, que venceu o “triplete”. Alegavam que a relação com o técnico se tinha desgastado e que seria impossível manter aquela senda vitoriosa. Rubiales, na altura, ligou ao presidente blaugrana a interceder pelas jogadoras.

Jorge Vilda e Luis Rubiales durante o Campeonato do Mundo de 2023
Molly Darlington

“Estou profundamente magoado e não me vou demitir”

Podia ser uma frase dita por Rubiales, na conferência em que revelou que não se ia demitir após o polémico beijo a Jenni Hermoso, mas foi Jorge Vilda que a disse, a 30 de setembro de 2022, aquando do anúncio das convocadas para dois amigáveis da “La Roja”.

O ainda selecionador de Espanha afirmou ter ficado “profundamente magoado” com a situação e injustiçado pelo julgamento em praça pública.

”Estou profundamente magoado porque é uma situação injusta. Não desejo a ninguém aquilo pelo que estou a passar estes dias. Em momento algum pensei na demissão. Pela injustiça e por tudo o que fizemos no passado. Pela energia e pela força que tenho para continuar. O que mais me dói é o que tínhamos e o dano que se está a fazer ao futebol feminino”, disse na altura.

O Mundial na Austrália e a consagração

NurPhoto

Depois do fracasso do Europeu de 2022, o Campeonato do Mundo era a “prova de fogo” para Jorge Vilda, que tinha novamente a dura tarefa de reconstruir a equipa para uma grande competição, após a renúncia das 15 jogadoras.

Pelo meio, em junho, dois meses antes do arranque do Mundial, 12 das 15 atletas enviaram um email à federação espanhola a informar da sua disponibilidade para voltarem a ser chamadas.

Vilda optou apenas por chamar apenas três jogadoras dissidentes. Aitana Bonmatí, Mariona Caldentey e Ona Batlle integraram o lote das 23 convocadas para a competição, que teve lugar na Austrália e Nova Zelândia.

Um percurso quase imaculado permitiu à seleção de “nuestros hermanos” sonhar com o título mundial, e assim igualar o feito masculino de 2010. Frente à Inglaterra no derradeiro encontro, Olga Carmona marcou o golo que garantiu a vitória.

O festejo da capitã após o golo na final
Rick Rycroft

Jorge Vilda fica marcado na história do futebol feminino. Mas, no relvado do Accor Stadium, a festa era sintoma da divisão interna: de um lado, celebravam as jogadoras; do outro, treinador e equipa técnica.

No mesmo campo, Rubiales protagonizou o momento mais triste do torneio, que relembra-nos do longo caminho que ainda há para percorrer.

Ganhar troféus não chega

Ninguém vai tirar de Rubiales os títulos e o sucesso desportivo que entregou ao futebol espanhol. Filho de um pai professor e de uma mãe cabeleireira, construiu uma carreira modesta como jogador e chegou ao topo como dirigente.

Tornou-se presidente da Associação de Futebolistas Espanhóis. Em 2011, liderou uma greve contra os atrasos salariais no futebol espanhol, que resultou em melhores condições para os atletas. Viria a ser importante no crescimento económico de toda a estrutura.

Criou uma imagem forte, que o ajudou a ser eleito, em 2018, presidente da Real Federação Espanhola de Futebol. Apesar de, dois anos antes, a diretora do sindicato o ter acusado de humilhações e comentários impróprios. O seu próprio tio, com quem também trabalhou, já lhe teceu duras críticas.

Comentários que o dirigente negou. Foi sempre esta a postura de Rubiales em casos do género. Nem mesmo quando todo o mundo viu, como no beijo à Jenni Hermoso, a reação foi diferente.

Apesar do tímido pedido de desculpas divulgado inicialmente, a verdade veio ao de cima no inflamado discurso na RFEF, em que anunciou que não se ia demitir e fez da vítima culpada, falando num “falso feminismo” e garantindo que o beijo foi consentido.

RFEF

"Acham mesmo que mereço esta perseguição? Que exijam a minha demissão? É assim tão grave que justifique a minha demissão depois de ter feito a melhor gestão da história do futebol espanhol? Acham que devo demitir-me? Não vou", exclamou Rubiales, que recebeu uma chuva de aplausos de outros dirigentes, equipas técnicas e selecionadores.

O discurso talvez tenha suscitado tantas ou mais críticas do que o próprio beijo. A pressão social subiu, os protestos chegaram às ruas, o caso foi enviado aos tribunais e a FIFA anunciou uma suspensão de 90 dias.

Até mesmo 11 elementos da equipa técnica feminina demitiram-se, restando apenas Vilda.

Certo é que as jogadoras, assim como no passado, bateram o pé: no total, mais de 80 - entre as quais as campeãs do mundo - assinaram um manifesto em que garantem não voltar a jogar enquanto a atual direção se mantiver.

“Se acabó” foi a hashtag escolhida por diversas pessoas e entidades para prestar apoio à Jenni Hermoso. Sabe-se que, infelizmente, o problema ainda parece longe de acabar. Mas o caminho está traçado.

Para ler em breve: entrevista a Susana Feitor

Susana Feitor
Reprodução/ Instagram

Muito se tem falado sobre o vídeo das internacionais espanholas no autocarro, em momento de festa, após uma conquista histórica, a falar de forma descontraída sobre o beijo de Rubiales a Jenni Hermoso.

O que “em nada retira o facto de ter sido uma invasão de espaço”, considera Susana Feitor, a primeira atleta portuguesa a ganhar uma medalha numa grande prova internacional de marcha atlética.

Na intervenção de Rubiales “mostra que ainda há um grande caminho a percorrer”

“Senti-me constrangida com as imagens”, diz Susana, alegando que Rubiales deveria ter, acima de tudo, “pedido desculpas e colocado o lugar à disposição".

A entrevista completa com a ex-atleta, que é presidente da Fundação do Desporto, será publicada na próxima semana.