O sentimento de frustração dos defensores dos animais perante as decisões do Tribunal Constitucional (TC) transformou-se num protesto. Foi convocada para este sábado uma manifestação, em Lisboa, em defesa da lei que criminaliza os maus-tratos aos animais. Nas redes sociais, o IRA - Intervenção e Resgate Animal lançou o mote: “Estamos fartos!”
O artigo do Código Penal que criminaliza os direitos dos animais foi aprovado há oito anos. Nele consta que “quem, sem motivo legítimo, matar um animal de companhia” ou “infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus-tratos físicos a um animal de companhia” é punido com uma pena prisão que poderá ir até dois anos. Mas, na prática, essa condenação não chega a realizar-se, porque o TC tem vindo a considerar que a lei é inconstitucional.
Tomás Pires, presidente do IRA, afirma à SIC Notícias que não se percebe “porque é que os juízes do TC demoraram mais de oito anos a perceber que existe a inconstitucionalidade na lei”. “É estranho de mais – para ser simpático”, remata.
A organização de defesa dos animais marcou este protesto depois de ter sido arquivado o inquérito à morte de 73 animais, que foram carbonizados durante o incêndio em dois abrigos ilegais de Santo Tirso, em 2020. A este caso acresce a “iminência do TC mandar abaixo a lei que criminaliza os maus-tratos”, acrescenta Tomás Pires.
“Acaba por se tornar saturante que casos como o de Santo Tirso sejam arquivados sem um único acusado. É surreal."
O protesto, marcado para este sábado às 15:00, no Marquês de Pombal, vai contar com pelo menos 10 autocarros disponibilizados pelo IRA, podendo haver mais veículos organizados por outras entidades e grupos particulares.
As previsões da organização apontam para “entre 15 a 20 mil manifestantes” – numa perspetiva “simpática”.
“Temos assistido e acompanhado nas redes sociais grupos de particulares e organizações zoófilas que estão a financiar meios de transporte para participar na manifestação”, acrescenta o presidente do IRA.
A poucos dias da realização do protesto, o Ministério Público requereu ao Tribunal Constitucional que declare a inconstitucionalidade definitiva da lei, avançou esta quarta-feira o Expresso e a Renascença.
O processo do canil ilegal em Santo Tirso
No verão de 2020, um incêndio atingiu a Serra da Agrela. Nesse local existiam dois canis ilegais que albergavam cães e gatos errantes. Os espaços foram consumidos, em parte, pelas chamas, levando à morte de pelo menos 73 animais.
O caso tornou-se polémico: de acordo com relatos partilhados na altura, as proprietárias dos espaços recusaram-se a abrir as portas para deixar os civis entrar e recolher os animais. Além disso, negaram-se também a soltar os animais para que pudessem fugir do fogo. Na altura, o primeiro-ministro, António Costa, chegou a considerar a morte dos animais como um “massacre chocante”.
A investigação tornou-se numa queixa-crime, avançada pelo PAN. Além das proprietárias dos canis ilegais, foi ainda constituído arguido o veterinário municipal de Santo Tirso que, durante dois dias, se recusou a ir ao local por considerar não ser responsabilidade sua se os animais corriam riscos.
Laurentina Pedroso, Provedora do Animal, reconhece que, para os tribunais, possa “existir um conjunto de situações" que sejam "difíceis de avaliar por um juiz”, principalmente num caso em que haja “um conjunto de entidades, todas elas responsáveis, que, de alguma forma, todas falharam”.
“Muitas vezes, o que acontece nestas situações é que a responsabilidade é partilhada”, afirma, referindo que, no caso de Santo Tirso estariam envolvidas a Direção-Geral de Alimentação e Veterinária (à data responsável pela tutela dos animais de companhia), a Câmara Municipal, o veterinário municipal e as autoridades policiais.
A Provedora do Animal lembra que, neste caso, existe ainda “uma situação de catástrofe, em que quer as autoridades, quer os civis tentaram fazer o seu melhor no sentido de proteger vidas humanas, acabando por descurar a vida animal”.
De acordo com o jornal Público, o PAN já anunciou que vai recorrer da decisão do Ministério Público. Também o departamento jurídico do IRA está a tomar providências para requerer a abertura da instrução, no qual se vão constituir testemunha.
A lei protege, mas a Justiça está “num limbo”
A lei foi aprovada em 2014 e faz parte do Código Penal. Contudo, a sua aplicação tem sido pouco frequente. A advogada Sónia Henriques Cristóvão, membro do gabinete de estudos jurídicos do Observatório Nacional para a Defesa dos Animais e Interesses Difusos (ONDAID), explica que, atualmente, “a lei é inaplicável”.
“O que temos na prática não é bom. Não é recomendável para a sociedade, não é justiça nem para os animais, nem para as pessoas. O que tem acontecido é que há pessoas condenadas pelos mesmos factos com que outras são absolvidas”, esclarece a advogada. “Isso causa uma incerteza jurídica que não pode acontecer, uma injustiça que não serve nem as pessoas nem os animais. E que deixa a lei sem aplicação prática”, acrescenta.
Mas porque não tem aplicação a lei? Segundo o entendimento de alguns constitucionalistas, o bem jurídico dos animais não está consagrado na Constituição e, por isso, não pode existir uma criminalização por maus-tratos a algo que não é expressamente defendido pela lei fundamental.
Por essa razão, o TC tem vindo a emitir pareceres de inconstitucionalidade para os processos relacionados com maus-tratos a animais. Ao terceiro parecer sobre um ponto concreto da lei, os artigos terão de ser analisados, em plenário, pelos 13 juízes. Desta análise resultará uma declaração com força obrigatória geral, como explicou à SIC Notícias, em entrevista anterior, o constitucionalista Jorge Bacelar Gouveia.
“Do ponto de vista da Constituição, a criação dos crimes só pode ser feita como última medida, como medida extrema, para proteger os bens jurídicos mais valiosos e o TC entende que a proteção dos animais não é tão importante como a proteção da vida, da integridade física, da liberdade sexual ou património das pessoas”, explicou, à SIC Notícias, o constitucionalista.
Para Sónia Henriques Cristóvão, a lei atual coloca os maus-tratos animais “num limbo”. “Não se trata de uma questão de prova. Nestes casos, os tribunais dão como provados os factos, ou seja, a pessoa maltratou ou matou o animal, mas, devido à inconstitucionalidade ou à dificuldade de interpretação, a pessoa é absolvida”, afirma a advogada, sublinhando que esta situação “causa um sentimento de impunidade” para quem comete o crime e, ao mesmo tempo, de revolta para quem defende a causa animal.
Laurentina Pedroso também reconhece que “algo está mal” na lei que criminaliza os maus-tratos a animais. Embora haja legislação que proteja estes seres vivos, “a justiça tem tido dificuldade em ter mão forte e firme e penalizar” os agressores. Além disso, esta dificuldade “passa uma imagem muito errada à sociedade”.
Sónia Henriques Cristóvão acrescenta que as “decisões do TC já se adivinharam há muito”. A advogada defende que é preciso repensar a lei e corrigir o que está errado.
“Aquilo que se está a passar é fruto de alguma precipitação, de falta de ponderação. A ideia está lá, a sociedade acompanha: é intolerável que estes comportamentos não tenham punição criminal da Justiça. Mas tudo isto é fruto de situações imponderáveis. Tem de se retificar as situações, porque tudo isto tem remédio”, remata.
A Provedora do Animal apresenta uma solução para contornar este sentimento de impunidade que existe atualmente: “Criar um regime expedito de contraordenações, que desmotive claramente as agressões e maus-tratos aos animais - com mão firme, com coimas elevadas.”
O sistema proposto por Laurentina Pedroso não iria substituir a criminalização nos tribunais, mas ambos iriam “existir concomitantemente". Ou seja, funcionaria à semelhança de outros regimes já em prática - nomeadamente as contraordenações de trânsito ou as coimas ambientais - tornando o processo “muito mais ágil" e “muito mais eficaz”.
“Este regime de contraordenações de uma entidade administrativa do Estado permitiria que as situações que são consideradas crime continuassem a ser avaliadas como crime", explica. “Um regime contraordenacional significaria uma resposta muito célere, em que o ónus da causa fica em quem cometeu os maus-tratos ao animal. Essa pessoa é que tem de ir procurar a sua defesa”.
Com base no atual cenário, os defensores dos animais temem que este tipo de impunidade se prolongue no tempo e, até, se torne definitiva. Uma das preocupações está também ligada a outro processo polémico, que está nas mãos da Justiça: o caso de maus-tratos do toureiro João Moura a 18 galgos.
Animais na Constituição: uma luta e uma petição
A inclusão da proteção animal na Constituição é um assunto que tem vindo a ser discutido. Vários partidos – nomeadamente o PAN, Bloco de Esquerda, Chega e o PS – apresentaram propostas de revisão constitucional onde são incluídas alterações nesse sentido. Mas o PSD, um partido importante para a aprovação destas propostas, poderá não estar de acordo. Para Laurentina Pedroso, não existe qualquer dúvida.
“Enquanto os animais não estiverem na Constituição, de pouco nos serve, perante a Justiça, que a criminalização esteja esplanada na lei. Porque os juízes têm vindo a decidir que não há respaldo na Constituição para que alguém seja punido com crime de prisão por ter feito uma situação gravíssima de maltrato a animal”, afirma Laurentina Pedroso.
E vai mais longe: “Não incluir os animais na Constituição agora é de uma gravidade sem precedentes para as futuras gerações”.
Uma petição intitulada “pela inclusão da proteção dos animais na Constituição da República Portuguesa”, soma já mais de 15 mil assinaturas. Outra petição “em defesa da lei que criminaliza os maus tratos a animais”, já ultrapassa as 58 mil assinaturas. “É um reflexo da sociedade que não quer que esta legislação seja extinta”, afirma Tomás Pires.
O presidente do IRA alerta que se a lei for declarada inconstitucionalidade, o país estará perante “um retrocesso”: “A partir do momento que não é crime agredir um animal, ninguém pode impedir ou condenar estes atos. Como é que vou explicar à minha filha de três anos, que vê um dono a espancar um cão, que eu não posso intervir porque não é crime?”
Várias figuras públicas têm também declarado apoio à proteção da lei que criminaliza os maus-tratos animais. Entre eles, o pivô da SIC, Rodrigo Guedes de Carvalho, que partilhou um vídeo no Instagram onde afirma, em tom de crítica, que “não deveria ser preciso nesta altura, no Portugal do novo milénio, explicar que os animais não são coisas”.
Por outro lado, Sónia Henriques Cristóvão não acredita tratar-se de um retrocesso. “Penso que não estamos numa fase de retrocesso porque é comummente aceite, na sociedade, que este tipo de comportamentos seja intolerável. E é cada vez mais aceite que as pessoas têm de ser punidas por este comportamento”, argumenta.
A corrida contra o tempo coloca lado a lado a revisão da Constituição com a decisão do TC. Se os 13 juízes decidirem que a lei é inconstitucional, esta será eliminada do Código Penal, sendo necessário reiniciar o processo de aprovação na Assembleia da República.
Se, por outro lado, a decisão do plenário for de que a lei não é inconstitucional, essa questão não se volta a colocar nos tribunais – não sendo, no entanto aplicada aos casos já julgados. Por outro lado, se a revisão constitucional se antecipar e incluir a proteção animal na Constituição antes de haver uma decisão do TC, a questão fica resolvida por si só.