Tiago Correia

Comentador SIC Notícias

Coronavírus

Opinião

3 anos, 3 meses e 12 dias depois

O que significa dizer que a pandemia acabou? O vírus SARS-CoV-2 desapareceu? O que a OMS recomenda que se faça daqui em diante? O professor de Saúde Internacional, Tiago Correia, responde a estas e outras questões.

3 anos, 3 meses e 12 dias depois
Canva

A 4 de maio de 2023, a OMS virou a página da Covid-19 enquanto preocupação de saúde global. Nesta história das nossas vidas que durou 1198 dias, mais de 765 milhões de casos foram confirmados, quase 7 milhões de pessoas morreram – algumas estimativas triplicam este valor –, 13 mil milhões de doses de vacinas foram administradas e mais 30 mil milhões de dólares foram investidos na investigação, produção e distribuição de vacinas.

Explica-se o significado do fim da pandemia, o motivo de ter sido agora anunciado e o que esperar daqui em diante, incluindo como encarar as reinfeções pelo SARS-CoV-2.

O que significa dizer que a pandemia acabou?

A expressão "fim da pandemia" representa um sound bite que entra no ouvido com facilidade e que, por isso, ajuda o cidadão comum a entender que algo mudou.

E o que mudou foi que o vírus causador desta doença, o SARS-CoV-2, deixou de ser classificado como "Emergência de Saúde Pública de Preocupação Internacional" (tradução de Public Health Emergency of International Concern).

Essa classificação é atribuída pela OMS a agentes patogénicos – vírus, bactérias ou parasitas – cujo contágio apresenta três critérios:

  • é extraordinário no sentido de ser inesperado ou desconhecido;
  • a sua disseminação internacional representa riscos de saúde pública noutros países;
  • requer intervenções coordenadas entre países.

De forma simples, "fim da pandemia" significa, então, que a Covid-19 deixa de ser considerada como um evento extraordinário e que obriga à coordenação entre países e agências de saúde.

Por que motivo foi agora que a OMS deixou de considerar a Covid-19 como emergência global?

Trata-se de uma decisão de proporcionalidade face às implicações desta doença. Após a imunidade adquirida pela vacinação em complemento à infeção natural, entende-se que há mais prejuízo do que beneficio em manter a Covid-19 à parte da gestão das demais doenças.

O objetivo é tentar que a Covid-19 deixe de ter efeitos sindémicos, ou seja, que a sua transmissão e medidas de contenção não agravem outras doenças e o bem-estar das pessoas. Os efeitos sindémicos da Covid-19 incluíram o agravamento da saúde mental, da aprendizagem escolar de crianças e jovens, do desemprego, da perda de rendimento, do maior sedentarismo e do isolamento dos idosos.

O facto de ter sido agora declarada diz respeito:

  • à grande proporção da população mundial vacinada;
  • à evolução das variantes;
  • ao padrão estável da doença no hemisfério sul após o início do outono;
  • à estabilização de casos e à compreensão das variantes após o alívio das medidas na China;
  • à estabilização de casos nas regiões onde há conflitos armados, incluindo na Europa central e de leste.

O vírus SARS-CoV-2 desapareceu?

Não, o que aconteceu foi que o vírus passou a endémico à escala global. Note-se o tempo que levou e o quão precipitadas foram as vozes que o afirmaram no espaço público há mais de 1 ano.

No caso deste vírus, jamais seria possível dizer que um país ou uma região do mundo tinham entrado na fase endémica, enquanto uma parte significativa da população mundial se mantivesse em pandemia.

Endemia traduz que a ciência entende melhor como os agentes patogénicos evoluem (as chamadas variantes) e prevê com mais rigor as implicações das doenças nos vários grupos populacionais. Endemia não significa algo irrelevante ou sem gravidade. Malária, VIH, tuberculose, ébola, dengue ou zika são endemias graves e permanentes em várias regiões do mundo.

Tratar o SARS-CoV-2 como endémico significa garantir que a livre circulação e convivência deste vírus entre humanos e outros animais mantém um baixo impacto para a saúde da população e para o funcionamento dos sistemas de saúde.

Por isso, importa esclarecer que continuará a haver casos positivos, complicações de saúde, sintomas persistentes e óbitos.

Quão perigoso é ter Covid-19 várias vezes?

Talvez seja ponto de maior discórdia na comunidade científica. O aliviar de medidas e a noção que o vírus veio para ficar torna a reinfeção inevitável. Os últimos dados conhecidos estimam a reinfeção entre 5% a 15%, embora se espere que venha a aumentar ao longo do tempo.

Para a generalidade das pessoas, o sistema imunitário está preparado para lidar com reinfeções devido à combinação entre a vacinação e infeções prévias. A eliminação do vírus é mais rápida e com menos sintomas, logo as complicações ocorrerão menos vezes (as estimativas apontam para a redução da severidade da doença entre 60% a 90%).

Isso não significa que o risco seja nulo. Alguns estudos sugerem que no caso de complicações graves numa primeira infeção, a segunda pode ser igualmente grave para um número considerável de casos (num estudo com 16 milhões de pessoas, 30% das pessoas que foram entubadas na primeira infeção requereram cuidados hospitalares na segunda infeção).

Quem teve Covid-longa na primeira infeção também parece estar mais vulnerável: num estudo realizado em Inglaterra, 80% disseram que os sintomas persistentes agravaram-se na reinfeção.

O que a OMS recomenda que se faça daqui em diante?

A OMS é muito clara ao afirmar que o facto de a Covid-19 deixar de ser uma preocupação global não significa ignorar esta infeção. Nos países mais pobres, 48% dos profissionais de saúde e 65% da população idosa continuam por vacinar, o que demonstra a persistência de iniquidades mesmo perante uma mobilização política e científica sem precedentes.

Nos restantes países é preciso garantir que não se passa de uma atenção excessiva e sufocante para um total vazio. Os sistemas de saúde devem integrar a monitorização da Covid-19 de forma duradora, estável e integrada nas respostas já existentes para as demais doenças transmissíveis.

Isso significa:

  • manter stocks de vacinas e de outros tratamentos;
  • apostar na educação da população para a vacinação dos grupos de risco;
  • garantir o diagnóstico precoce para monitorização do estado clínico dos grupos de risco;
  • integrar a vacinação contra a Covid-19 nos protocolos de vacinação regular dos grupos de risco;
  • manter a monitorização sobre a evolução das variantes;
  • manter a investigação sobre a segurança e efetividade das vacinas.

A título individual, as pessoas não devem ignorar sintomas e devem resguardar-se quando têm sintomas gripais. A utilização da máscara, diminuição de contactos sociais, teletrabalho são novas rotinas que adquirimos e que não precisamos de abdicar neste regresso à normalidade.