“Se voltar a ser normal e aceitável que as grandes potências possam amedrontar e ameaçar os seus vizinhos mais fracos, isso afetará a perceção de segurança e o modo como as pessoas, em todo o mundo, se comportam umas com as outras.” (Yuval Noah Harari, historiador e filósofo israelita)
O primeiro ano da invasão de Putin mostrou-nos que a Rússia não vai conseguir ocupar a Ucrânia toda (a este ritmo, nem um século chegava). O grande problema é que o segundo ano de guerra, que hoje se conclui, avisou-nos que a Ucrânia também não vai conseguir recuperar todo o território ocupado.
Esta guerra é existencial para os dois lados: o agredido não tem alternativa que não seja resistir; o agressor ficou sem recuo possível (cometido o erro brutal da invasão maximalista, Putin não sobreviveria internamente se fracassasse na Ucrânia).
A Rússia não foi provocada: avançou para a invasão porque Putin quis. Só por isso. Os países do alargamento a Leste não aderiram à NATO para conspirarem um ataque a Moscovo: fizeram escolha livre e democrática. A agressão russa à Ucrânia provou que esses países tinham razão em sentirem-se ameaçados pelos devaneios imperialistas de Putin.
É na Ucrânia que se define a nova fronteira da Europa democrática. A opção de milhões de ucranianos de não fugirem nem se renderem vai definir o que vier a acontecer na maior guerra em solo europeu desde a Segunda Guerra Mundial. Não temos o direito de os deixar sozinhos na corajosa ambição de resistir a um agressor várias vezes mais forte.
A Rússia não pode ganhar. Ponto. Se o fizesse, os autocratas sentir-se-iam autorizados a usar a força para atingirem os seus objetivos. Não podemos aceitar. É por isso que esta guerra não tem só a ver com a Ucrânia: tem a ver com todos nós. Vai a Europa estar à altura?
Moscovo nega com palavras o que faz no terreno. Mais: inverte o ónus – acusa a Ucrânia dos crimes que os russos somam na invasão. É um universo orwelliano, em que a verdade é transformada pela linguagem, imposta à força pela lei do agressor. A Rússia é uma potência anacrónica e em decadência. Esconde a degradação pelo horror. Como nos lembra Bernard-Henry Lévy: “Teremos todos que viver sob a sombra escura da destruição da Ucrânia”.
E se na Casa Branca estivesse Trump? Talvez a Ucrânia já fosse uma espécie de protetorado russo. Biden está a fazer o correto na liderança ao apoio à Ucrânia - mas não é de todo garantido que isso lhe renda ganhos eleitorais. Se os EUA voltarem a liderança isolacionista e de egoísmo nacionalista, Putin terá caminho livre. É o paradoxo temporal: ainda há guerra porque a Rússia falhou a blietzkrig dos primeiros dias, só que o prolongar do conflito por vários anos tenderá a favorecer o agressor. O relógio está a contar.
Não, a Rússia não é a vencedora
Aos olhos de hoje, parece que a Rússia está por cima e a Ucrânia a perder. Temos, por isso, que olhar para a globalidade destes dois anos.
Putin escolheu esta guerra, mas os seus planos saíram-lhe completamente furados. Acreditou que o exército ucraniano não estaria à altura da supremacia russa. Confiou em demasia na fragilidade europeia pela excessiva dependência aos combustíveis fósseis russos (sobretudo de Alemanha e alguns países do antigo Pacto de Varsóvia). Contou demasiado com o suposto “declínio americano” (invasão do Capitólio, polarização política, fracasso no Afeganistão, idade avançada do Presidente). Exagerou nas consequências do Brexit (que incitou e financiou).
Teve, nos últimos 24 meses, várias desagradáveis surpresas.
Não tomou Kiev em dias. Já passaram dois anos e isso ainda não aconteceu. Não depôs Zelensky, não provocou mudança de poder na Ucrânia para um governo fantoche a favor da Rússia. Aumentou a sua dependência estratégica em relação à China. Perdeu o mercado europeu e norte-americano.
A Rússia controla 20% do território ucraniano - mas não ocupou toda a Ucrânia e não dá mostras de o conseguir. O que significaria "negociar a paz" se nem sequer é claro quais são verdadeiramente os objetivos russos? Ceder território travaria a passada imperial de Putin? Claro que não.
Na mente do ditador
Ficou traumatizado com a capitulação da RDA na queda do muro de Berlim. “O ponto mais importante para compreender Putin é pensar qual foi o acontecimento que mais abalou a sua vida: foi a experiência de ser agente do KGB em Dresden, na Alemanha Oriental, em 1989. Trabalhava diretamente com a Stasi [polícia política da República Democrática Alemã] como parte da ocupação da Alemanha Oriental e a experiência de ver ruir o Muro de Berlim a partir dessa perspetiva fê-lo querer voltar a mudar o rumo da história”, apontou Anne Applebaum, nas Conferências do Estoril de 2022.
Centralizador, é herdeiro da autocracia burocrática da URSS, que sempre serviu. Aparentemente discreto e de poucas falas, foi desenvolvendo, com os muitos anos de poder, um culto de personalidade que tem por base a figura do macho-alfa, capaz de impor pela força a grandeza perdida da Rússia histórica.
John McCain, que foi durante décadas um dos políticos norte-americanos com maiores credenciais militares e de política externa, detestava-o, ao mesmo tempo que o temia: “Putin é um assassino e nunca deixou de ter dentro de si um agente do KGB”.
Primeiro em 2008 na Geórgia (Ossétia do Sul e Abkházia), depois em 2014 (Crimeia e Donbass): Putin quis recuperar a visão de que a Rússia é o poder central da Eurásia e que tem o direito de exercer hegemonia sobre os países da região. Quis afirmar-se como o novo czar do século XXI.
A jogada da Crimeia surgiu dois anos e meio depois das manifestações em Moscovo. Serviu para repor a sua popularidade alta, exibindo postura bélica. Putin usa um conflito político atrás do outro para manter a ligação com o eleitorado.
Na Síria, segurou o aliado Assad e com isso ganhou enorme ascendente na região. Terá, com isso, ganho pontos com EUA e países europeus, porque a força russa ajudou a derrotar o Daesh. Mas o que poucos, na altura, terão antecipado é que Putin fez na Síria uma espécie de “ensaio geral” para a invasão na Ucrânia.
Enquanto isso, foi financiando e incentivando movimentos extremistas que põem em causa as democracias liberais: Le Pen em França, Brexit no Reino Unido, Donald Trump nos EUA.
Mas o mais grave estaria para vir.
O que terá levado Putin – alguém que ascendeu com igual precisão, estratégia e eficácia a um poder quase absoluto no Kremlin – a cometer tamanho erro como o de ordenar invasão total à Ucrânia?
O excesso de poder terá traído o cerebral Vladimir. Haverá saída possível?
O rosto envelhecido de Zelensky
Zelensky ficou como o rosto de uma resistência que ficará nos livros de História. Num ano, a sua cara envelheceu uma década – mas o coração de resistente nunca parou de bater forte. “Nesta guerra todos os dias são segundas-feiras”, disse aos ucranianos, num dos vídeos diários com que tem conseguido manter uma comunicação permanente, para manter a chama viva.
Ao contrário de Putin – cada vez mais distante do seu povo e inacessível em relação a quem lidera – Zelensky distingue-se por um estilo próximo, aparece ao lado dos cidadãos ucranianos, assume-se como mais um entre muitos.
Do seu destino dependerá o nosso destino coletivo enquanto europeus. Como Zelensky repetiu várias vezes desde 24 de fevereiro de 2022, “se a Ucrânia não aguentar, a Europa não aguentará”.
Houve momentos definidores: recusou o exílio americano na madrugada em que os russos poderiam ter tomado Kiev e isso sinalizou a vontade de resistência ("não preciso de boleia, preciso de munições").
E é preciso lembrar os horrores de Irpin, Bucha, Borodyanka e Mariupol. E em tantos outros locais.
PRINCIPAIS MOMENTOS DE DOIS ANOS DE GUERRA:
24 FEVEREIRO 2022 | Putin inicia invasão em larga escala da Ucrânia
27 FEVEREIRO 2022 | Russos falham tomada de Kiev
16 MAIO 2022 | Ucrânia reconquista Kharviv
14/20 SETEMBRO 2022 | Ucrânia reconquista Kupiansk, Izium e Balakliia
30 SETEMBRO 2022 | Putin anuncia anexação de Donetsk, Luhansk, Zaporíjia e Kherson
20 MAIO 2023 | Rússia conquista Bakhmut
24 JUNHO 2023 | Prigozhin desafia Putin na “Marcha pela Justiça”
23 AGOSTO 2023 | Morte de Prigozhin
16 FEVEREIRO 2024 | Russos tomam Avdiivka
AS AJUDAS E AS DÚVIDAS
O impasse americano e o dilema europeu
CONTRIBUIÇÕES DIRETAS EM EQUIPAMENTO MILITAR À UCRÂNIA DESDE 24 FEVEREIRO 2022 (em milhares de milhões de euros):
EUA - 42,2
ALEMANHA - 17,7
REINO UNIDO - 9,1
DINAMARCA - 8,4
PAÍSES BAIXOS - 4,4
NORUEGA - 3,8
POLÓNIA - 3,1
Canadá - 2,1
Suécia - 2,0
Finlândia - 1,8
(fonte: Ukraine Support Tracker, Instituto Kiel)
BÁLTICOS E NÓRDICOS, ALERTA MÁXIMO
De longe os que mais ajudam Ucrânia em % PIB:
ESTÓNIA 3,6%
DINAMARCA 2,4%
NORUEGA 1,7%
LITUÂNIA 1,5%
LETÓNIA 1,2%
Países Baixos 0,7%
Polónia 0,7%
Finlândia 0,7%
Eslováquia 0,6%
PORTUGAL 0,6%
Alemanha 0,6%
EUA 0,32%
(fonte: Ukraine Support Tracker, Instituto Kiel)