A Beleza das Pequenas Coisas

“O que o Presidente disse sobre reparações históricas está correto, mas o que importa reparar são os efeitos do colonialismo e do racismo”

Professor catedrático do ISCTE, ativista dos direitos LGBT e autor premiado, Miguel Vale de Almeida foi durante dois anos deputado do PS e a figura que esteve à frente para a aprovação da lei do casamento entre pessoas do mesmo sexo, em 2010. Doutorado em antropologia, as questões de género e sexualidade, assim como o pós-colonialismo, a etnicidade e conceito de ‘raça’ estão no centro da sua investigação. Ouçam-no nesta conversa em podcast com Bernardo Mendonça

Ainda está bem vivo na memória coletiva o que aconteceu no passado dia 25 de Abril quando largas centenas de milhares de pessoas saíram à rua e desceram a Avenida da Liberdade, em Lisboa, mas também no Porto, e noutras tantas cidades do país, para celebrar os 50 anos da revolução dos cravos com um brilhozinho nos olhos e gritar “Fascismo nunca mais!”

Já não se via tanta gente junta desde o 1º de maio de 1974. Uma multidão de gente, sem princípio nem fim, com muitos cartazes e cravos vermelhos, a dar conta que a liberdade e a democracia são valores profundos, essenciais e inegociáveis para a maioria das pessoas em Portugal.

Ao mesmo tempo, algumas vozes mais à direita juntaram-se a reclamar a celebração do 25 de novembro, denunciando que não estão de bem com os festejos da democracia.

E para aumentar a polarização e agitar as águas e a espuma dos últimos dias, estiveram recentemente as declarações do Presidente da República que, num jantar com jornalistas estrangeiros, descreveu de forma imprópria e desadequada António Costa e o atual primeiro-ministro Luís Montenegro, avançou que cortou relações com o filho e lançou de forma inesperada o tema da “reparação histórica”, sobre o mal que foi feito por Portugal no passado às populações das ex-colónias.

Algo que o atual governo se recusou a discutir e afirmou mesmo: “Não esteve e não está em causa nenhum processo com esse propósito.”

O Presidente e muitos historiadores, comentadores e políticos se alinham de que Portugal não pode ou não deve continuar a meter este tema para debaixo do tapete, e que tem a “obrigação” de “liderar” o processo de reparação aos países que foram colonizados.

Muitas outras vozes criticaram a forma desajeitada e desadequada como o Presidente o fez, dando espaço a que a extrema direita aproveitasse para subir o tom do discurso de trincheiras.

Qual a maneira de discutir estes temas de forma construtiva, sem que sejam canibalizados pela extrema direita?

O antropólogo Miguel Vale de Almeida há muito que estuda estes assuntos que envolvem o pós-colonialismo, a etnicidade e o conceito de “raça”. Professor catedrático no ISCTE-IUL e investigador do Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA), deixa claro neste podcast que a discussão em torno das reparações históricas deve ser recentrada:

"Em abstrato o que o Presidente disse sobre as reparações históricas está correto, mas em termos concretos no momento político em que foi dito e a quem foi dito, é errado. Estraga o próprio assunto que ele quer defender. E dá trunfos à extrema-feira. O tema tem de ser centrado de outra maneira, não é uma questão de relações entre países, mas sim das populações que são historicamente desfavorecidas pelo facto de terem sido colonizadas. As reparações devem ser pelos efeitos do tráfico de pessoas escravizadas, pelos efeitos do colonialismo e pelos efeitos do racismo, que foi uma parte constitutiva do tráfico de pessoas escravizadas e do colonialismo, esses efeitos são vividos hoje pelas comunidades afro descendentes. Toda a reparação deve ter a ver com as pessoas afro descendentes que vivem hoje."

Sobre estas matérias, Miguel Vale de Almeida publicou o livro “Um Mar da Cor da Terra: ‘Raça’, Cultura e Política da Identidade”. E a sua pesquisa – com trabalho de campo em Portugal, Brasil, Espanha e Israel/Palestina - tem-se dedicado também às questões de género e sexualidade, com outras publicações como “Senhores de Si: Uma Interpretação Antropológica da Masculinidade” ou “A Chave do Armário. Homossexualidade, casamento, família”.

O seu livro mais recente, escrito em co-autoria com Ethel Feldman, foi distinguido com o Grande Prémio de Literatura Biográfica Miguel Torga.

Além de escritor, cronista e blogger, Miguel Vale de Almeida há muito que é um dos rostos mais visíveis do activismo pelos direitos LGBTQIA+ e, em 2009, foi eleito deputado à Assembleia da República, pelo PS, tendo estado envolvido na aprovação do casamento igualitário.

Pai de Salomé, Miguel Vale de Almeida afirma-se atento aos movimentos anti democráticos, mas dá conta que 82% de pessoas não votaram no ódio.

“Vivemos um assalto às liberdades por parte de pessoas que nunca se deram bem com a liberdade dos outros. Não percebem que não precisam reprimir a liberdade dos outros para manter a sua. Ninguém impede as pessoas de terem famílias heteronormativas, de recusarem o aborto para si, e de seguirem todas as opções que queiram ter nas suas formas de constituir família, desde que não impeçam os outros de fazer as suas escolhas.

É a diferença entre ser democrata e não ser democrata. Essas pessoas que não são democratas acreditam que o privilégio é justificado, e que uma determinada forma de vida, de família, de sexualidade, pode e deve ser imposta.”

O que mais falta para se cumprir Abril? “A indústria do medo”, como Miguel Vale de Almeida apelida a extrema direita, tem os dias contados ou corremos mesmo o risco dela se expandir por cá como tem acontecido na Europa e um pouco por todo o mundo? Qual a maneira mais eficaz de combatermos esses extremismos e de despolarizarmos?

Miguel Vale de Almeida responde a isto e a muito mais nesta primeira parte da conversa. A segunda parte deste podcast pode ser ouvida neste próximo sábado, dia 4 de maio. Boas escutas!

O genérico é assinado por Márcia e conta com a colaboração de Tomara. Os retratos são da autoria de Nuno Fox. E a sonoplastia deste podcast é de João Ribeiro.

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