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Algures, além do arco-íris

Não preciso de sair, nestes incrivelmente imprevisíveis 7 dias, para saber que lá fora há um movimento de arco-íris nas casas de cada um de nós.

Algures, além do arco-íris

É domingo. Lá fora. O primeiro domingo da Primavera no hemisfério norte. Lá fora. Há um sol por entre nuvens, às vezes espaçadas outras densas. Há um céu azul, às vezes carregado de cinzento outras pincelado de tons de branco, se é que tal existe como o observo aqui. Já choveu.

A ciência exata simplificou o fenómeno celeste em sete cores, ainda que conste que o senhor Isaac distinguiu cinco e acrescentou duas para soar melhor, dada a escala musical de sete notas. Não haverá, ao que creio, uma correspondência científica entre o espetro de cor e a música. A não ser esta da relação originária. E Newton talvez estivesse cheio razão quando desenhou o arco-íris assim.

Em agosto de 1939, quando chegou às salas de cinema, a América necessitava de um arco-íris para o espírito como de pão para a boca. Uma década mergulhada numa recessão económica que não por acaso ficou conhecida como “A” Grande Depressão fazia do desespero e da fatalidade a vida quotidiana. Dias depois, na Europa, rebentava a Segunda Guerra Mundial. Muitos europeus só terão visto O Feiticeiro de Oz depois dos 70 a 85 milhões de mortos contados nos anos de aflição, horror e desesperança. Anos a preto e branco quando a tecnhicolor revelava o caminho dos tijolos amarelos. Muitos americanos também só o terão visto quando em 1956 chegou à televisão. Uma década depois do fim da guerra. “Somewhere, over the rainbow” refletia o lugar onde cada um se identificava à sua maneira e, mais uma vez na História, revelava o arco-íris em notas musicais. Consta que quando viram a canção no filme, os produtores torceram o nariz e disseram que era enfadonha. O realizador insistiu em não cortar a cena. E Fleming talvez estivesse cheio de razão quando desenhou o arco-íris assim.

Escusado será dizer que foi Melhor Canção com um Óscar que o próprio filme não tem e se tornou num ícone do imaginário não tão infantil quanto se possa pensar, mas do adulto que lá vê as virtudes da coragem, da compaixão e do crer, o elogio da simplicidade e a ambição da felicidade e encontra um conforto para as ameaças de tempestade.

Dorothy via-se no meio de um tornado que não viram chegar a não ser quando já eram impotentes para o travar e virava a casa do avesso. Da tia, ouvia o conselho: “find yourself a place where you won’t get in any trouble” (encontra um lugar onde não te metas em sarilhos) e confessava, de coração aberto, “estou assustada”. Dorothy que nos ensinou a cantar que havia um céu azul depois do tornado, também nos deixou aquela frase que talvez nunca como hoje fez tanto sentido “There’s no place like home” (não há lugar como em casa).

Para alguns antigos da Língua Portuguesa, o arco-íris também se conhece por “arco da velha” o que em português eu tenho como sinónimo de coisas extraordinárias. Essas coisas “do arco da velha” que pedem que resgatemos agora, nos dias em que fomos apanhados por um “tornado” e corremos para casa e mesmo assim nos vimos virados do avesso à procura de algures, além do arco-íris encontrarmos a esperança para os dias que virão. Ainda falta andar muito caminho, tentar convencer os leões cobardes, os espantalhos e os homens de lata a precisar de coração a acompanhar-nos a enfrentar a bruxa má – que era tão assustadora, mas tão assustadora que dava pesadelos às crianças e levou mesmo nalguns países a subir a classificação etária – e que só aparece 12 minutos num filme de 1 hora e 3 quartos.

Não saio de casa desde domingo passado, quando voltei do trabalho na redação da SIC. Mas não preciso de sair, nestes incrivelmente imprevisíveis 7 dias, para saber que lá fora há um movimento de arco-íris nas casas de cada um de nós. Digo-o aos meus amigos, sobretudo aos que têm filhos, que os desenhem, que digam o que representam, que os mostrem nas videochamadas que fazem aos pais e aos avós. Têm-me chegado bonitos relatos. Tenho-os visto, pela Internet, serem erguidos em varadas, colados em beirados, exibidos por aí.

Que os arco-íris sejam as nossas bandeiras nas janelas quando o orgulho nacional está à prova. Que o silêncio das ruas soe a toque das vuvuzelas, das concertinas, da alma da gente. Que nas luzes acesas nas casas vejam a esperança que é preciso para saber que somos um povo do “arco da velha”. E que algures, além do arco-íris, vai ficar tudo bem.

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