Tiago Correia

Comentador SIC Notícias

País

Guia para entender o novo estatuto do SNS (parte 2): medidas emblemáticas

Opinião de Tiago Correia, comentador SIC e professor de Saúde Internacional.

Guia para entender o novo estatuto do SNS (parte 2): medidas emblemáticas
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Tendo feito uma primeira leitura do estatuto do SNS sublinho duas dúvidas, recordo dois argumentos e destaco cinco medidas.

Dúvidas

Uma dúvida é a autonomia do ministro da Saúde face ao ministro das Finanças. O atual estatuto do SNS continua a inscrever esta cotutela, o que embora possa ter um sentido teórico tem causado enormes constrangimentos no setor.

A segunda dúvida é a qualidade da legislação que desenha as medidas concretas do estatuto do SNS. Dada a complexidade dos temas, parte significativa das medidas ainda tem que vir a ser regulamentada. Ora, a qualidade de qualquer estatuto do SNS depende da qualidade da legislação que ainda está por vir.

Argumentos

Um argumento é que a interpretação das medidas deve ser feita a partir das ideias que estão na base do novo estatuto do SNS.

Outro argumento é que a apresentação destas medidas diz pouco sobre a forma como vão funcionar na prática. Uma coisa é a formulação de políticas; outra é a sua implementação.

Medidas emblemáticas

  • Direção executiva do SNS

Compete coordenar a resposta assistencial do SNS, logo visa concretizar a ideia do funcionamento em rede. Sabe-se que irá concentrar competências em matéria de recursos humanos (antes sob alçada da ACSS), de articulação com a rede de cuidados continuados integrados (antes sob alçada das ARS) e nomear os administradores dos hospitais e dos centros de saúde (antes sob alçada do/a ministro/a). Ficou claro que a direção executiva representa a vertente operacional e executiva das orientações do Ministério da Saúde, a quem compete pensar politicamente o sistema de saúde no seu todo. A ideia por detrás da medida está correta.

As principais dúvidas operacionais dizem respeito ao modo como este centralismo vai funcionar com a autonomia jurídica dos prestadores (hospitais e centros de saúde) e no quadro das políticas de descentralização da administração pública já conhecidas que, no caso da saúde, transfere competências para os municípios a nível de alguns grupos profissionais e da gestão operacional das infraestruturas dos cuidados de saúde primários.

  • Autonomia dos prestadores

O princípio da autonomia aplica-se tanto aos hospitais como aos cuidados de saúde primários. Quanto aos cuidados de saúde primários, os agrupamentos de centros de saúde passam a funcionar numa lógica de gestão semelhante aos hospitais ganhando responsabilidades jurídicas que são transferidas das ARS.

Quanto aos hospitais ganham maior autonomia para efeitos de contratação e concessão de incentivos aos recursos humanos, mas também para a constituição de modelos internos de gestão virtuosos (o caso dos centros de responsabilidade integrada).

As principais dúvidas dizem respeito à eficácia limitada da autonomia de gestão num quadro de carreiras profissionais que precisam de ser revistas, dado que se mantêm as dificuldades estruturais de contratação e retenção dos profissionais.

  • Regime de dedicação plena dos profissionais

Remete para regulamentação futura, mas sabe-se que é de natureza voluntária e primeiro aplicável aos médicos. Pouco é possível dizer nesta fase, a não ser que de forma correta impõe-se como regime obrigatório para os profissionais em funções de liderança.

  • Fixação de profissionais em áreas carenciadas

A fixação de profissionais fica dependente de majorações de remuneração. Considerando que no passado foram usadas várias iniciativas com base neste pressuposto, mas cujos efeitos foram quase inexistentes, direi que se fez pouco a este nível.

  • Competências a nível regional

É errado assumir que o novo estatuto do SNS extingue o nível regional na tomada de decisão. Esta ideia podia surgir ao saber-se que parte das atuais competências das ARS são transferidas, ora para a direção executiva do SNS ora para os agrupamentos de centros de saúde. Extinguir as ARS tem sido colocada várias vezes em cima da mesa e é uma ideia que acolhe alguns apoios. Não acompanho essa ideia. É preciso saber distinguir entre a necessidade política de haver um nível regional que concretize a política nacional de saúde e a capacidade que tem sido dada a esse nível para o fazer. Por isso, fiquei agradado com a preocupação demonstrada em não criar um vazio entre a tomada de decisão central e a tomada de decisão local. A ideia por detrás da medida está correta.